26 dezembro 2007

De Alagadiços e Areais

Cecília encarava aquela montanha branca tão próxima e aguardava Martin pacientemente. Ela agora era a única na cidade. Ela e as redes nas varandas. A ventania não havia parado por três anos consecutivos e agora as últimas portas abertas da cidade estavam trancadas. Ela chorava quieta, olhando a areia invadir as ruas da cidade. Mesmo que não se lembrasse mais como tudo começou, ela sabia exatemente como terminaria. No vazio.

De início, a areia que o vento trazia parecia vir de longe, irritava os olhos e deu trabalho a Seu Manel da Farmácia. Depois, começou a sujar as casas, foi se chegando calada, raspando as peles grossas daquele sol do meio da terra. Cecília achou que a cidade fosse se acostumar porque Alagadiços sempre se acostumava com as coisas. Todos se acostumaram com o fato de não haver padre por 10 anos até chegar Padre Jacinto e Alagadiços se acostumou a ele também. Se acostumaram com o fato do Plano Diretor Contra a Seca de Alfinim Ariza, filho do Coronel Sebastião Ariza, não ter dado certo e, ao invés de irrigar as plantações, o rapaz verdejou os campos do pai com a mesma rapidez com que a cidade ressecou. Alagadiços se acostumou a não ter mais que poça d'agua. A cidade se acostumou a ver os filhos e os pais partirem. As mulheres se acostumaram a esperar o carteiro. Porém, depois de um ano de vento e poeira os moradores acordaram com a Duna parada bem diante da cidade e aí ninguém mais quis se acostumar.

A Duna era grande, fazia sombra e caminhava na direção da cidade. A casa de Geraldo Anão foi a primeira a ser engolida pela areia. Pararam de chegar os tropeiros, caixeiros e, por fim, o correio e o prefeito. Cecília passava horas pensando como Martin faria agora que a montanha branca estava ali. Sonhava com o raiar do dia e a sombra de Martin chegando de barba por fazer.



A areia alterou os humores. Os homens viviam de olhos vermelhos, as mulheres curvadas de varrer, ninguém dormia direito e a comida era crocante . O povo virou uma gente magra, cinza e áspera. Até que o vento foi invadindo também a memória e raspando as lembranças de todos e a terra ficou sem sentido. Maridos esqueciam o que falar para as esposas, as crianças esqueceram as canções e, quando a areia impediu Padre Jacinto de rezar o Pai-Nosso, ele mesmo trancou a Igreja e partiu para a Duna como Cristo partiu para o deserto. Cecília esqueceu a infância e quase esqueceu Martin.


Foi quando Alagadiços começou a esvaziar de gente. O primeiro foi Zeca de Dôra que não voltou para buscar Luzia e os meninos. Depois, as trigêmeas de Seu Assis e - todos disseram que por pura coincidência - os três filhos de Dona Jurema. Assim, em ondas e sob o vento constante, Cecília viu cada um trancar sua casa e encher um jegue enquanto ela ficava os dias no banco da praça, vendo e esquecendo quem deixava a cidade. Aquela areia comendo suas memórias até perceber que quanto mais Alagadiços esvaziava, mais a Duna invadia a cidade e sumia com poços, jardins e portas até não restar quase nada. A Duna do esquecimento, aquele sumidouro de lembranças eram os outros esquecendo Alagadiços. Era Martin esquecendo-se dela. Zeca esquecendo Luzia. Os meninos de Luzia esquecendo a avó Isabel. As trigêmeas jogando fora o retrato de Seu Assis. Quanto mais esqueciam-se de Alagadiços mais a areia sumia com o piano alemão de Dona Marlúcia.


Padre Jacinto era o mais otimista, mas a areia comeu-lhe os humores e ele ficou sombrio e partiu. Em alguns dias Cecília esqueceu do Padre também. Só lembrava que precisava sentar e esperar alguém por algum motivo. A areia alcançou seus pés e cobriu-os no mesmo dia em que Martin completou 45 anos. Aos 50, ela não passava de cachos negros cheirosos de alfazema. Aos 60, Cecília era brisa. Aos 65, o vento parou. Aos 70, Alagadiços deixou de existir. Aos 75, Martin completou 50 anos de sul e 45 de casado com Maria Alice, moça carioca da Tijuca. Se ele lembrasse de Alagadiços saberia que não sobrou nem a ponta da cruz da Igreja nem - como era mesmo o nome dela? - Cecília no banco da praça.






15 dezembro 2007

A Beleza de Lia Diem



Os meus olhos e os de Lia Diem se esbarraram em uma calçada de Botafogo no verão de 2007. Ela com um par azul arregalado como quem prendeu a respiração por tempo demais e eu com meu par negro perdido nos cartazes do Estação. Segurou meu pulso com firmeza e me puxou para perto de si em uma ansiedade que transbordava pelos dedos que me marcavam. Sussurrou desculpas e disse que tinha pressa, precisava contar logo uma descoberta. Os lábios pronunciaram palavras rápidas demais, apressadas pela felicidade de achar alguém, mesmo desconhecido, para compartilhar. Contou e eu poderia beijá-la por ter visto nos meus olhos pretos sem graça que era daquele segredo que eu precisava.

Contou-me das saudades que sentiu, das escolhas mal feitas, dos arrebatamentos e da calmaria. Havia entendido que a ausência e o silêncio podiam esconder curas quando menos se esperava. Ás vezes, conformar-se em ter sido ingênua é a primeira salvação e a primeira armadura. Disse-me que parara de cobrar a paz de espírito perdida para a paixão e desistira de catar pedaços de alma rasgados pelos cantos. Poderiam virar girassóis.

Trincou os dentes quando disse que há muito desistira de ser fiel a qualquer moral e bom costume sem sentido, não via seu papel de mulher como aquela que pode consertar um homem. Negava-se a carregar consigo qualquer um para o amadurecimento. Bastava a sua própria carcaça. Apreciava, sim, a companhia de quem o fazia da sua própria maneira e estendia feliz a mão e puxava um banquinho para o descanso. Não perdoava os julgamentos pelos quais passara e desejava que passassem pelo que ela passou e que chorassem quanto ela havia chorado. Guardava certos rancores que tentava extirpar ainda sem sucesso.

Beijou minha bochecha e contou dos desejos, das entranhas reviradas de amor, do dia em que o tempo parou, dos olhos que a refletem como espelhos, de amores, dúvidas e dívidas. Contou que morava em outra casa onde o vento era forte e que a chuva viria lamber as varandas mais cedo ou mais tarde . Depois do temporal qualquer coisa a mais nasceria e, quem sabe, melhor. A perturbação chegaria e partiria e a vida continuaria cheia de pequenos atos de felicidade.

Encerrou pedindo que eu parasse de pensar pouco da humanidade e desse para alguns minhas meias-patacas de confiança. "Trate de encarar os lobos, sinta muito medo, tenha qualquer esperança e mude, apenas para variar." Tomou fôlego e me soltou com um olhar mais feliz. Partiu pela rua sem manter uma linha reta. Acreditei que poderia ser eu. Na verdade, torci para que fosse.

Anos depois ela sentou ao meu lado no ônibus, me encarou e não disse nada. Achei que não tivesse me reconhecido. Quando se preparava para saltar, no entanto, encostou o queixo no meu ombro e sussurrou:

"Você está linda agora."

Era mais do que verdade. Meu nome era Lia Diem e eu tinha olhos azuis.

28 outubro 2007

Falta ainda você

Chega logo que a cama ainda está quente, os lençóis revirados, as toalhas molhadas que pedi para você estender. Vem cantando, pois a vitrola arranha um disco seu que perdi a capa e você me mataria se soubesse disso. Deixa-me dizer que a prateleira não agüentou o peso dos seus livros porque você insistiu em não me deixar usar a furadeira. Diz que esqueci de novo o carro no shopping e as chaves sobre a banca da Prefácio. Precisei arrombar a porta a pés-de-cabra e lágrimas pesadas. A poeira e o par de pingüins me esperavam. O Ray-ban ainda está sobre a mesa. A casa não é sem você e seu cheiro.

Volta, que a varanda ainda está aberta e o vento ainda sopra da Gávea pra Botafogo. A tarde laranja caiu, o morro acendeu e eu espero fechar-te num abraço que nem o Redentor na quina da janela. Volta, que os armadores ainda seguram a sua rede, e eu, aninhada lá dentro, prometo não chorar mais.

19 outubro 2007

Do Diário de Suelen Gueiras

achado entre as páginas 134 e 135 do diário.
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R querido,

Pensei demais em sua carta, porque, como você mesmo sabe - e reclama - , eu penso demais. Não sei, no entanto, se, mesmo depois de todo esse tempo, lhe dou uma resposta que baste. Você me perguntou R, se eu poderia dizer a você o que eram as músicas de amor para os que nunca amaram e eu te digo, apesar de não querer jogar nenhum balde de água fria nas suas expectativas, são todas besteiras. Cogitei várias respostas e a que ficou sem refutações foi: besteiras. Nenhuma delas diz do tempo que pára ou do sangue que escorre. Até para mim, R, que já amei, a resposta permanece. Ao chegar a essa conclusão, percebi que eu mesma andava muito mais descrente e desconfiada das coisas do amor do que poderia imaginar.

Amor é uma reviração de entranhas, requer sangue grosso e quente, pede o seu estômago. Amor é cru e, ás vezes, feio. As músicas não falam dessas coisas. É lógico que eu não gostaria de dizer tudo isso para alguém que procura tanto, mas, você sabe que “eu gosto é do estrago...”

É verdade R, que eu não sou a melhor pessoa para lhe dizer tudo isso, eu ainda não passei da primeira fase do jogo. Talvez, para você ele chegue diferente de como chegou para mim. Em todas as maneiras ele te obriga a ver-se e saber-se demais, a lidar com os seus demônios e com os alheios. O outro vai pedir, julgar, desconfiar, vai trazer uma paz de espírito que você nunca sentiu, uma sensação de pertencimento. Você permanece ali, num jogo esquisito de pernas bambas. Nada consome e enriquece mais.

R, não procure nem se engane. Amar pela primeira vez é saber até onde você pode ser melhor do que você acha que é. Pela segunda vez é simplesmente saber que acaba. Primeiro amor nunca acaba, vira presente do tempo e fica guardado sem perder o gosto doce. Segundo amor... segundo amor, ás vezes, só existe para te ensinar que termina.

Acredito que Carol já tenha lhe falado tudo a respeito e duvido que ela acredite em músicas de amor.

Um beijo de longe.

S.
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Para moetzinho...

03 outubro 2007

Antes que as luzes acendam

As imagens piscavam frenéticas dentro dele compassadas por um coração meio bêbado e pela música rápida. Não ouvia nada e a luz intermitente não o incomodava. O gosto do uísque fazia lembrar que aquele momento não era nem paraíso nem inferno, era a Terra como sempre fora, com os quadris dela dançando na sua frente. Não era uma visão do passado, não era memória, era o novo com um gosto de melancolia que vinha junto com a bebida, talvez.

Era uma noite dionisíaca demais, muita gente, música alta - o uísque que ele já não sabia mais de onde surgia - e ela dançando. Ele não se reconhecia, inundado pela vontade de levá-la dali pela mão. A namorada estava longe suficiente para deixá-lo lembrar em paz que uma noite de sua vida se resumira a imprensá-la contra uma daquelas paredes e depois disso... depois disso várias coisas, tanto conquistadas quanto partidas.

Percebeu que ela deixava a pista na direção do banheiro. Pensou que poderia seguí-la, mas desistiu. Nada de mais, já fizera uma vez. Tanto seguir quanto desistir. Surgiu mais uma dose. Enquanto ficasse ali, sentado, desejando-a, ele beberia. Irremediável, tanto para o uísque como para ela.

No banheiro mínimo, ela bateu a cabeça contra a porta da cabine, vendo, nos olhos fechados, as lembranças passarem como se tudo fosse um velho drive-in. Quatro paredes e toda a sua saudade espremida, fazendo força contra o seu corpo. Era tão desnecessário chorar e quase incontrolável.

Saiu e olhou-se no espelho. Pelo chão, o resto da convicção de que não sentia mais saudades. Não era capaz de evitar um tremor nas mãos. Esfregou o rosto e convenceu-se de que era outra. Já havia perdido tempo demais querendo ser a mesma menina de antes, que não tinha mais remendo. Eternamente apaixonada pelo rapaz no sofá, que não era mais o mesmo. Irremediável, tanto para o sentimental como para ele.

Deixou o banheiro e voltou para a pista. Ele continuava sentado com parte do olhar nela, parte nos amigos. Não se deu por vencida, não chorou mais tempos idos, não se arrependeu nem tomou iniciativa. Apenas sorriu, para umas manipuladora, para outros decidida. Para ele, que era o único que importava, oferecia um trato. A namorada estava longe suficiente para deixá-los em paz com suas memórias. Ele com os olhos nela e ela dançando para ele.

Irremediáveis os dois.





14 setembro 2007

eu olho pro infinito e você de óculos escuros...

“Eu estou aceitando a realidade, só isso.” – ele falou pela terceira vez depois de diversas variações de um mesmo tema. Parecia que tentava convencer mais a si do que a moça quieta na sua frente. Ela não respondia porque não havia resposta por mais que quisesse rebater o monólogo. Ele buscara uma solução sem contra-argumentos, quem era ela para impedir o lúcido de voltar para sua vidinha real? Estranho como os lúcidos tendem a temer paixões furiosas e as transformam em impossibilidades. A moça, no entanto, era louca, acreditava piamente que surrealidades arrebatadoras e doces podem fazer parte do cotidiano de alguém dito normal. A moça calava enquanto ele, o lúcido, acendia um cigarro para ter o que fazer com as mãos tímidas e nervosas.

Tudo o que poderia ser dito já estava sobre a mesa antes mesmo do segundo “estou caindo na real... não tinha mesmo como dar certo.”. Para além disso só tristeza e surpresa e isso não oferecia palavras sensatas. Intercalou amargos e doces na boca, abriu a carteira para pagar a cerveja. Os olhos estouravam como ressaca e, sem querer mais lembranças, fugiram pro meio-fio.

“Vamos ser sensatos... pôr os pés no chão... essa situação...” – ele continuou vendo que ela se preparava para levantar sem mais discussões.
“A situação nem começou a existir ainda.” - ela cortou.

“Mesmo assim... não daria certo...” - só faltava mesmo essa faceta dele - a frouxa - para ela achar que o conhecia bem. Quando tirava os pés do chão o outro decidia pelo movimento contrário. Infeliz... ele ou ela, tanto fazia. Terminou a cerveja de um gole só e a ressaca dos olhos caiu sobre ele.

“Conformismo babaca esse seu.” – ela disse.

Não tinha como dar certo mesmo. Não enquanto ele não soubesse que é no exato tempo de um salto que certas paixões acontecem. No instante cronometrado em que o corpo suspende a subida, mas ainda não iniciou a queda, em que os pés não procuram o chão porque ainda estão extasiados com a liberdade e correm o risco delicioso de ficarem por lá.

Os passos firmes não fizeram barulho quando ela sumiu do bar, nem parecia que pisava no chão.

27 agosto 2007

Cena 20 Plano 1 Take 1


The End.
Vamos começar pelo fim porque é assim que a semana está se iniciando. Terminou. Vinte e cinco peixes dourados que foram pendurados em uma árvore em Botafogo foram devolvidos ao dono, um quarto de criança foi desmontado por completo, um quarto de hotel foi pago, um gato de luz cortado.
Não sobrou nada, só luz e sujeira. Saudades do after no anexo, com ar-condicionado, cerveja e cansaço no rosto de todo mundo. Quando se precisa acordar cedo a farra parece mais atraente. Fazem falta vinte e cinco peixes na área de serviço, o ronquinho do motor do respirador. A casa está mais vazia e me falta a visão surreal daqueles seres alheios ao mundo, flutuando na minha casa. Peixe só lembra de cinco segundos, o suficiente para que a segunda volta no aquária seja absolutamente nova para ele. "blessed are the forgetfull..." Deus já deve ter feito isso pensando que peixe terminaria mesmo, na escala da evolução, em aquário.
Ficou a alma da menina pelo caminho. Diferente de seus atores peixes ela não esquece e nem quer que o cansaço acabe porque é a certeza de missão cumprida.

17 agosto 2007

Enciclopédia Foster de Metáforas e Comparações

página 18

"Sabe farol de ônibus em dia de chuva? Aqueles com água dentro? Eram os olhos dela quando eu disse que ia embora."

13 agosto 2007

PROCURA-SE

alguém em quem descansar os olhos e o espírito

02 agosto 2007

A Menina e o Italiano

Um dia a Mãe levou a Menina ao cinema. Mãe, Menina e Tia no cinema em noite feminina. A Mãe gostava de filmes estranhos, quanto mais difícil a língua mais ela gostava. A Menina não entendia. Mãe e Tia discutiam. As luzes apagaram e acenderam e ela, do alto de seus doze anos, de cabelos escorridos partidos no meio da cabeça, soltou um sonoro “Ô filme podre!” E nunca mais assistiu nada do dito Italiano. N-U-N-C-A.

Mesmo assim, um pouco traumatizada, ela cresceu e foi estudar cinema. Cortou os cabelos bem curtos e desistiu do repartido no meio - pela graça de Deus! Ainda cruzava a ponte Rio-Niterói guardando um resquício da teimosia pseudo-intelectual que vinha cultivando desde os 12. “E aquele diretor, o que você acha?” – perguntavam os amigos e ela replicava com a mesma propriedade de dez anos atrás: “Ô filme podre!”

Ficou assim por muito tempo, convencida de que algo que não havia entendido no princípio estava errado para sempre. Até que decidiu despencar-se ao centro para assistir certas pérolas na tela grande. O Italiano estava lá e ela decidira dar outra chance porque era benevolente. Nunca chegou a ver o filme. O trânsito, a Voluntários da Pátria, a volta às aulas... tudo se uniu para que ela não chegasse. Na mesma hora, na sua casa na Itália, o Italiano morria.

Foi estranho quando a Menina voltou para casa porque justamente o Italiano do filme podre, a fez perceber algo novo e que andava faltando nela. A Menina entendeu que ver um filme é ter uma pessoa muito viva e presente perto de você, se desenrolando em grãos de prata e luz. Por duas horas o diretor respira no seu pescoço e, se não respirar, é porque não é bom. Era por causa disso que ela sempre achava que essas pessoas nunca morriam. Ao contrário, - ela notou - todo diretor morre aos poucos porque deixa um pedaço de alma em cada filme. Quando não dá mais para fazer filmes, eles acabam. Na hora de escrever o obituário o termo certo seria “terminou”. O Italiano não morreu, ele terminou. Que nem filme. Terminou. Dá para ver sua alma por aí.

Era a hora da Menina perder um pedaço de alma... e ela estava feliz.
"Visione del silenzio
angolo vuoto
pagina senza parole
una letera scrita sopra un viso
di pietra e vapore
Amore
Inutile finestra"
Michelangelo Antonioni - Caetano Veloso

25 julho 2007

Um ano bom



Um ano!


O blog continua aqui e os meus peixes ainda estão vivos... nem eu apostava nisso. Vale mais beber por isso que pela morte do ACM...




Na foto: Chico, meu peixe ator. E viva o fora de foco!

19 julho 2007

Do diário de Suelen Gueiras

califórnia, __/__/__

“... já não sei mais há quanto tempo estou fora de casa... Muito tempo. Perdi dois quilos. Dias que esgarçaram as tramas do lar, que me afastaram de casa e me mostraram que é hora de criar outras tramas. É hora de voltar para não me acostumar com o calor e o céu azul demais. Existe isso onde eu vivo, mas é tudo outra coisa...”
(...)
“ir embora parece suspender a vida aqui e, querer retomá-la em dois ou três anos, como se não fosse mudar, soa juvenil. Parece que tudo estará aqui quando eu voltar, sem mudanças. Ou melhor, quase tudo. Ou quase todos... Acho que a menina que deixo aqui não reconhecerá aquela que voltará um dia. Gêmeas com anos de diferença.”
(...)
"chegar aqui foi lembrar de mim, de alguém que vive na minha casca e eu vejo muito pouco. Ás vezes eu esqueço que pode ser uma companhia incrível para horas tristes e felizes. As portas de entrada e os aposentos do lar mudam e nós vamos com eles, se adequando a casa mais do que a nós... dessa vez me adeqüei a mim mesma e, mais magra que estou, meu eu novo serviu justo e lindo e resolvi usá-lo mais vezes...”
(...)
“um dia, ouvi dizerem que esbarrar com um esquecimento era tal qual ver um mal-assombro. Esbarrei em um nesse tempo por aqui, sem olhos fundos nem cor de lençol. Provocou arrepio e, quando passou, sentamos pra tomar uma cerveja... não sei, no entanto, se voltou a ser memória ou não.”
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“Aproveitei os dias nessas terras para risadas e coisas leves e acabei fazendo algo totalmente novo. Levo a moda para casa para ver se pega por lá. Dancei no elevador vazio. Talvez o porteiro tenha sido testemunha, mas, espero mesmo é que ele tenha dançado junto comigo. É quase o mesmo que tomar banho de chuva, te liberta das convenções, do tempo e do mundo...”
(...)

“o último biscoito da sorte que comi aqui (acho qua agora entendi os quilos a menos) me dizia ironias: “Sem ver-se a oportunidade, a habilidade é inútil." Ri só.”

“O táxi chegou. Talvez eu devesse fugir com o circo.”

07 julho 2007


"Dava todas as minhas escumadeiras para estar aí com você." - disse Luís, pelo skype, após uma noite inteira chefiando a cozinha de um novo bistrozinho da moda que servia comidas fusion-étnicas nos Jardins, em São Paulo.

"Então... pega o vôo das 15:00 e vem pra cá! Você não trabalha hoje mesmo." - Marina, que ainda se acostumava ao título de comunicóloga, insistiu mas não colou. Luís escapou pela tangente, alegou falta de grana e falou que ela fosse encontrá-lo como fizera das últimas três vezes. Vinha se convencendo que os chefs eram uma raça tão ou mais atraente que os músicos e os comunistas limpinhos e guardava a descoberta bem perto do peito que era para não ter concorrência.

A jovem, criada no meio de papéis e longe da cozinha (porque papel pega fogo), não soube direito o que eram escumadeiras, mas pareceu que valiam muito. E, quando saiu na rua, imaginava escumadeiras de prata em redomas de vidro e caixas forradas de veludo compradas em viagens exóticas à India e ao Marrocos. Todas elas eram supérfluas frente a saudade que Luís sentia dela, todo o pequeno tesouro dele dado ao mundo por uma ponte aérea de 45 minutos até Botafogo. Todas as escumadeiras de Luís por um chope no Plebeu com ela.

Chegou na casa da mãe que fritava um ovo com gema mole para o pai sentado na varanda. Sem jeito, perguntou o que era uma escumadeira. A mãe levantou uma roda metálica furadinha com cabo comprido. Na cabeça de Marina poderia ser muito bem um bocal de chuveiro também. As escumadeiras de Luís repentinamente perderam a magia e o mistério. Amor de "Casa e Vídeo" ela não queria. A paixão acabou ali. Uma concha de feijão com furos e ainda fazia manha!

Tomou o chope no Plebeu com Estefânia, amiga jornalista cansada de ironias amorosas. Cada um oferece o que pode, cada um aceita o que merece.

16 junho 2007

Quinhão ruim

Os ombros doíam de uma luta quase cotidiana contra seus demônios. Pequenas figuras dentuças com rabinhos pontudos cor de carmim. Monstros interiores, capitães de falanges inteiras, cuspidos para fora em palavras amargas e amarelas. Egoísmos extremos, ressentimentos, vaidades, a vontade de cuspir na cara daquele que julgou, que apontou o dedo sem olhar a própria mão e que segue como se estivesse certo. Você, o apontado, caminha com a terrível sina de ouvir ecoar injustiças. As bondades feitas são esquecidas porque não deram certo. O pensamento de nunca mais fazer pelos outros o que eles não farão por você.

Houve época de calmarias, sem batalhas trágicas dentro das entranhas e foi acreditar ingenuamente que os dias continuariam claros para tudo desmoronar. A decepção é a primeira vitória dos demônios interiores e quando ela ganha várias vezes seguidas é sinal que já dominaram portões e trincheiras e aquartelaram-se no corpo e na mente. Um olho vê contra-ataque, o outro é espião. As palavras saem secas e inflamadas, a impressão de redenção vem pela dor ao outro. Ter a certeza de que dias bonitos existem da sua pele pra fora e nunca mais. A chuva incessante provoca inundações e escorre, carregando tudo do peito ao dedo do pé.

Você torce para que um canto de alma ou pele ainda não conquistado lidere rebeliões, convulsionando uma mente já meio dormente e rachada repleta de pedaços de lembranças-lata-velhas. Cacos de espelho no sol. Rebeldes empurrando demônios de língua afiada para um abismo, transformando-os em letras raivosas em folhas tão brancas. Durante horas, nas noites, caem nos abismos e são trancafiados em seguida. Pensamentos negros e humanos demais. O corpo rígido em trabalho constante de cuspir tudo, de conter, com a força dos dedos sobre o papel, maldades mínimas contra si e contra o outro. Por isso os ombros doem, as mãos suam, as costelas apertam os pulmões. Você surta em silêncio.

A mente se limpa por algum tempo e é possível chorar e apreciar o sol sem tirar disso fatos com os quais se cortar. Os cadernos deveriam ser enterrados e os mapas incendiados como se fez com os baús que guardavam Lúcifer e seus anjos mas acabam por azedar na prateleira ao alcance das mãos.

Não parecem ter fim os demônios e, mesmo assim, os revoltados nunca desistem.

26 maio 2007

Esses dias de outono

Ela gostava muito de dormir. Ele era um insone. No meio disso muita coisa. Palavras na verdade, mais que outras coisas que talvez aconteceram. Não se sabe até hoje qual dos dois as levou mais a sério. Ninguém entendeu se foi ela que acordou de sobressalto antes do tempo ou ele que não dormiu pro sonho.

Fato era que agora se reencontravam, numa hora em que ela estaria acordando e ele estaria indo dormir, com um céu de várias cores e um vento com cheiro de terra molhada. Ela queria que fosse outono, mas não era. Estava longe de ser outono.

Os dois se viram, mas pareceu que não. Não havia palavra nenhuma. O peito doeu? Esse peito ainda doía? Ou era a saudade que se guarda pra se sentir nessas horas de reencontro? Ela não ouviu o peito dele reclamar. Talvez fosse a distância entre os dois, não só aquela de poucos metros, mas a fina linha de um limite melancólico que impedia qualquer palavra. Se fosse outono existiriam palavras.

Seria estúpido perguntar se ele não conseguia dormir. Seria estúpido dizer qualquer coisa depois do outono terminado. Ela sentou-se no degrau da porta da casa, pés na grama molhada. Sorriu-lhe um bom dia sem palavras. Ele tirou os óculos escuros que disfarçavam as noites em claro e sorriu-lhe de volta. Lembrava dele bem ali, também sem óculos, rosto cansado de noites em claro com ela. Mas na lembrança era outono.

Ofereceu-lhe um café e acrescentou: “Pra ajudar a emendar no dia de hoje.” - depois calou-se e sentiu-se estúpida. Café para um insone que provavelmente queria dormir.

Ela percebia agora o porquê de não terem mais palavras. Na verdade, já havia se acostumado com isso, o que não havia conseguido fazer era abrir mão delas. Queria as palavras dele de volta, puras e simples, sem declarações, sem desabafos, diretas e que a faziam rir. A vontade de lhe contar o dia só por contar, sem querer o dia dele em troca. Dizer que estava cansada da vida e que lembrou dele ao ouvir uma música e ver um filme. Quem sabe ele responderia uma gracinha, uma novidade e os dois ririam depois nas suas respectivas vidas. Não era o silêncio que a incomodava era a falta de qualquer coisa que lhe desse sentido. Era o fato de ter seu outono quebrado. A falta de palavra. A falta do outono. Não era mais a falta dele nem das noites com ele.

Ele aceitou o café, para sua surpresa. Tomou a caneca da mão dela e sentou-se na grama molhada, bem ao lado dos seus pés.

“Está sem sono?” - a voz dele, que na sua cabeça era sempre sem palavras, lembrou o outono.

“Nunca.” – ela respondeu e ele riu, quebrando um silêncio sem significado após estações inteiras. Era como se nada tivesse acontecido e ela desejara, no passado, que nada tivesse acontecido, pois a pouparia de uma tristeza. Agora ela se arrependia de ter pensado tal coisa. Tudo deles ela queria, não de volta, mas no seu devido lugar num outono de dias bonitos onde as pessoas suspiravam “esses dias de outono...”

Havia acabado mesmo, por inteiro. Agora não deixava mais saudade, deixava lembrança e silêncio e estava remendado. Era o quê agora? Talvez primavera. Palavras de novo no ar? Ela bateu de leve no ombro dele. Ficaram lá, sem mencionar o outono nem mais nada. Palavras novas, sem declarações, faziam-na sorrir e lembrava-se de dezenas de coisas para contar e saber. Mas primeiro um instante de silêncio pulsante e ansioso para acreditar que as coisas, ás vezes, se remendam.

14 maio 2007

Amarcord 2

Do portão convidativo, mas nada ameaçador, o primo mais velho - ainda inacreditavelmente pequeno - sentia muito mais do que o cheiro do homem que o jogava para o alto na foto. Eram guardadas, ali, as imagens de um diálogo motivado pela "engenhoca" tecnológica tão falada por aquele mesmo homem que o levantava na fotografia. Como se fosse um troféu erguido por alguém trajando preto e branco. Gesto, esse, que emocionava o homem, o filho do tal homem e posteriormete o primo já não mais tão pequeno. O tempo tratou de levar o homem e fez com que ele não conhecesse a menina linda que, nua e segurando uma mangueira, tomava banho no chão de lajota e desfilava um sorriso capaz de iluminar todo aquele corredor e refletir o brilho que vinha dos cachos grandes e brancos da senhorada cadeira de balanço.


Texto por Rafael, o primo mais velho incrivelmente pequeno.

Amarcord


Era um portão branco nada ameaçador. Pelo contrário, era convidativo. De voltas brancas, que riscava um arco gasto no chão de lajota. E “lajota” era palavra que se dizia lá e nunca aqui. Da mesma forma que muriçoca. E elas eram muitas.

Era uma sala de chão desenhado, um par de sofás que pinicavam. No fim do corredor havia um cofre grande suficiente para guardar todos os sonhos infantis e pesado suficiente para permanecer lá até o fim dos dias ou até que ela se casasse. Ambos eram igualmente distantes.

Casa de mistérios. Qual seria o cheiro do homem que jogava para o alto um primo mais velho inacreditavelmente pequeno? A redoma de vidro protegia a Nossa Senhora do quê? Porque a cama de casal se a avó só dormia de rede? O que existia no último quarto, aquele do telefone preto e pesado cuja ponta do fone encaixava perfeitamente no seu queixo pequeno?

E, depois de caminhar pelo banheiro todo verde-azeitona e pela cozinha toda azul-céu, lá estava a cadeira de balanço estacionada ao lado da porta do jardim. Ali a luz do sol era sempre delicada, na medida exata para fazer os cachos grandes e brancos dela brilharem. A menina que vinha de longe entrava sem cerimônias e ela punha as palavras cruzadas no colo, balançava os pés pequenos em chinelas havaianas, dava um sorriso e falava bem alto:

“Olha ela aí!”

19 abril 2007

Do Diário de Suelen Gueiras

TOTLECO*


"...Seriam todas as perguntas reversíveis? Existe o direito de perguntar ao outro o que acabou ele acabou de lhe perguntar só por esse simples motivo? Existe àquele que responde o dever ou o direito da mentira? O que seria pior: uma grande mentira nunca descoberta ou uma pequena mentira inútil dita quando você sabe que ela não é mais que isso mesmo?Mentiras pequenas e mentiras mesquinhas. Existe um bem na mentira inútil e pequena? E na mentira útil? Preservar é só uma ilusão? Mentir pequeno ou grande, nos poupa ou poupa aos outros?Mentir nos poupa mais que aos outros. Talvez não..."


"...Sim, eu queria ter mentido naquela hora, exatamente ali, mas não consegui. Não havia com o quê mentir. No lugar, ouvi e chorei de verdade uma verdade. Queria ter mentido e queria que mentissem para mim. Uma para me garantir, a outra para me poupar. É feio rezar pra que mintam pra mim? É feio pedir que me poupem? Ingênua ou covarde seria eu? Queria que doesse como dói em mim. E só, com uma mentira, minto que tudo vai bem..."
"...Definitivamente ingênua..."

"...Se a gente repetir 10 vezes a mesma mentira ela se torna real tão somente para nós? Repita que não fez. Repita que não sabia. Repita que não é bem assim. Repita que ela não entendeu. Repita que ele estava errado. Repita que a culpa foi do outro. Repita quem faltou. Repita que não se importa. Repita que sempre é você. Repita..."

"...Tão ridículos nós que mentimos e ao mesmo tempo tão recorrentes em todos os lugares. Os mentirosos são companheiros e são o mundo todo. Quem ouve a mentira sim, está só, porque apesar de já ter mentido, naquele momento ele não está entre os companheiros, ele não tem o apoio do mundo todo. No momento da mentira, o enganado se sente inimigo do mundo e ao mesmo tempo tão frágil para lutar contra ele. O enganado perde a fala e tenta saber, dentro de si, se suas mentiras doeram tanto assim. Mas ele sabe e sente que a mentira designada a ele é sempre mais e maior do que aquela que ele designou para o outro..
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Pura mentira..."


"...Não se enganem, a mulher-maravilha não morreu... encontra-se em coma..."


*TOTLECO é o quarto mês asteca

01 abril 2007

Neurologias


“Esquizofrenia leve”, disseram os doutores diante das minhas queixas de linha cerebral cruzada. Prescrição especial. Mas como o Diazepan não me fazia lá tão bem, provocava uma certa dormência no meu lobo occifrênico diametral superior central, na quinta prega F4, responsável basicamente pelas minhas risadas e minha habilidade para tarefas mais complicadas como contar piadas e fazer caretas (Acreditem em mim, não há coisa pior que ver graça nas coisas e ser incapaz de rir). Sendo essa minha maior queixa suspendi a medicação e mudei de doutor.

“O senhor entende o que eu digo, doutor?” – disse eu – “Que o meu lado esquerdo fala muito mais que o meu lado direito comigo? O lado esquerdo é verborrágico, o direito é mais tímido. Mas o incômodo é que eles brigam, doutor! Arengam incessantemente. O lado esquerdo é mais enérgico, não me deixa dormir, o direito, mais tranqüilo, se refugia em corações e cacos durante o dia. "Covarde!" diz o esquerdo e resmunga qualquer coisa o direito. Eu fico no meio, como uma mãe que segura os meninos travessos pelos pulsos na hora de atravessar a rua.”

“O problema doutor, é que o lado direito não responde, pobrezinho. É romântico, idealista, jovem, indeciso. É libriano, entende? O esquerdo não. O esquerdo é o resto, tagarela, instigador, obsessivo, firme, sábio. O esquerdo não quer ser nada que ele já não saiba que é. Eu cedo ao lado esquerdo e afago o direito como um gato. Às vezes o direito me puxa suavemente prum canto e me diz que eu sou ele. Minha voz se amansa e eu sou bem mais feliz comigo mesma. Já o esquerdo reprova e me mostra um mundo mais repleto que o mundo direito. No meu caso doutor, o meu direito é gauche. Que me diz o senhor?"

“Que dia é hoje, hora e onde você está?”

“Eu sou LOTE* doutor, não se preocupe. Digo-lhe que o problema é apenas de falta de telefonista nisto tudo, sabe? Alguém que envie a chamada certa pro destinatário competente. Linha cruzada, doutor.”

O doutor suspirou e olhou o pátio do hospital.

“E então doutor, tem como descruzar?”

“Não, não tem. Infelizmente. A senhora, entre esses dois lados, é quem?”

“Eu? Ué, eu sou eu! Margarida.”

“Não, não... a senhora se vê mais no lado direito ou no lado esquerdo?”

“Ah não doutor, não me enrole com essas de política que o meu negócio aqui é neurológico!”
*LOTE = Lúcida e orientada no tempo e no espaço.

25 março 2007

See you on the dark side of the moon...




"... for long you live and high you fly, but only if you ride the tide..."



Respire. A música dizia, respire. Ela deixou o corpo balançar num movimento serpenteante que não combinava com a música. Seria a música ou a serpente que pareciam vir com ela desde a infância?


Fechou os olhos ao som do rock que embalara sonhos adolescentes, que trazia lembranças da época em que chegava em casa e seu pai estava largado no escuro ao som altíssimo de relógios despertando loucamente. Nunca houve mistério tão grande quanto aquele que ela sentia nos segundos entre fechar a porta e acender as luzes. O pai abria os olhos sonolentos, desligava a música e lhe dava um beijo. As notas ouvidas do elevador pareciam nunca ter existido. Ela não entendia, não havia vestígio nenhum de toda aquela atmosfera pesada de segundos antes.


Respire. E, como se nunca mais existissem dívidas ou amores incompletos, como se ideologias e retrocessos não precisassem de sentido, como se ter ou não um emprego não importasse mais que saber ou não a letra da música, como se suar fosse a prova de estar vivo, a vida desprendeu-se dela e a envolveu. Serpenteou pelo seu corpo esguio e beijou-lhe o pescoço dizendo: “you are young and life is long and there´s time to kill today”.


Quem soubesse que se livrasse das preocupações, quem tivesse desapego suficiente por meros seis minutos que provasse de uma liberdade guardada dentro de si, de mergulhar num grande buraco bem no centro do estômago e só sair de lá e recolher a vida quando fosse a hora de bater as palmas.


Desfez-se, então, o mistério da menina pequena que via o pai perdido de si mesmo e não entendia. Abriu os olhos, alguém acendia as luzes. Hora de recolher os cacos, os relógios calavam.

04 março 2007

Do Diário de Suelen Gueiras


JANEIRO
..........ANTES EU FOSSE SHIRLEY VALENTINE!!!!!!!!!

“...Esquecer, ás vezes, é virtude. Uma pena que não ando muito virtuosa ultimamente...”

“...Ando querendo mesmo chutar esse cachorro moribundo que é o mundo, me encher de raiva e deixar essa de mocinha lutadora pra próxima da fila. Ser uma filha da puta e errar bem feio, cagar o pau. E não vou me incomodar que todos me apontem na rua e cochichem as minhas sacanagens. Pelo menos eu me livrei disso tudo, de uma vez por todas! Se o certo não me traz nem satisfação, completude ou alívio, vejo redenção até na filhadaputice..."

"...O que me importa é tão pequeno aos olhos do outro que, em breve, também não vai me importar mais. Essa efemeridade me incomoda..."

"...Mas eu insisto nesse erro de fazer as coisas certas, de correr atrás de um equilíbrio que não me parece existir. Seria essa coisa de astros? Eu insisto em fritar o ovo aguardando um elogio..."

04 fevereiro 2007

Voz rouca

Via essa menina pelas ruas com passos decididos para todos exceto para ela. Andava muito quieta, virada para o lado de dentro, caminhando meio pelo avesso, dando uma boa examinada em entranhas e pensamentos. Os óculos escuros, que um amigo um dia dissera que não caíam bem no seu rosto, serviam mesmo para esconder olhos revirados que encaravam o fundo da cabeça.

Vinha ela, então, muito compenetrada e meio frágil, procurar no mundo letras para o que sentia. Passava meses nessa busca sempre triste de catar letras como quem cata feijão. Juntava-as no vento, na praia e nas sopas. Roubava de risos alheios e escolhia uma ou outra entre as várias que ficavam presas em seus dedos quando passava a mão nas lombadas dos livros. Guardava todas na mente e nasciam, perto ali do coração, frases feitas de pedacinhos de realidade.

Meses neste trabalho insistente de formiga letrada para pode dizer tudo o que tinha dentro de si. Juntou suas letras mais lindas, eloqüentes e melancólicas, as mais parecidas com o que ela era por dentro e, numa noite, disse todas. Falou com todas as letras. Uma construção inteira que, aos seus olhos, formava uma escultura quase certa do que ninguém via dentro dela.

Faltavam só alguns detalhes, algumas letras e palavras que ela esperava tirar de algumas respostas e tapar buracos na sua escultura, reforçar articulações. Ao invés, recebeu um abraço gostoso, um beijo na testa, um tapinha no ombro, um cheiro leve de esperança que se desvaneceu no primeiro suspiro. Será que ouviram? Não entenderam? O sono anuviou a vista e não se pode ver como ela estava por dentro, como ela era inteira mosaico. O sono tapou as falas ou ela se enganou achando que poderiam existir e, na verdade, não eram mais que sereias e harpias?

N-e-n-h-u-m-a l-e-t-r-a.

Ficou lá a estátua que deveria dizer tudo o que ela sentia por dentro. Capenga e inaudita.

Pôs os óculos grandes demais, perdeu-se a menina dentro de si de novo, procurando outras letras para ver se diz melhor ainda o que quis dizer dessa vez. Outros meses, no entanto, até curar as bolhas das mãos e o inchaço dos olhos vermelhos, até ter coragem de se mostrar novamente e arriscar.

Novos passos pretensiosamente decididos, cada vez mais cansados de procurar.
 

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