01 dezembro 2008

Rehab

Larissa pegou a chave de casa, a bolsa e saiu de uma vez, sem tempo para dúvidas. Acreditando-se mais velha, mais segura, mais só - só no que dizia respeito a ele, na verdade - entrou no elevador e olhou o espelho. Concluiu que realmente não tinha mais o rosto sem defeitos de quatro anos antes; mais profundos que uma ou outra linha de expressão, eram os vincos de certas partes coladas às pressas. Sorriu ao leve pensamento de que ele se surpreenderia com a sua presença, se reaproximaria manso, comentaria que vira seu último trabalho e, ansiando por uma vingancinha feminina, pensou em rejeitá-lo ao final da festa.

Ela estava indo para qualquer lugar porque sabia que o encontraria, reparou em todo o esforço de estar caminhando para fingir um encontro ao acaso e revê-lo. Naquele silêncio constrangedor dos elevadores, refazia seu passos como em um jogo de xadrez, analisando jogadas, movendo sua rainha ameaçadoramente na direção de um rei ainda não destronado por completo. O elevador estava cheio de memórias dele. Então, bateu-lhe o quanto o esquecimento é um exercício de disciplina. Ela nunca o esqueceria como esquecia as chaves, a carteira e o celular: em qualquer lugar e repentinamente. O esquecimento, nesse caso, é de prática muito mais consciente do que as mães ensinam para as filhas. Não existe "vai passar", só o "faça passar".


Por escolha dele, Larissa havia arrancado-o da sua vida a golpes de pé-de-cabra e sangue pisado. Agora, de cacos colados, oscilava entre aceitar as cicatrizes ou aceitar que o destino pregava-lhe uma peça e ela andava feliz para a arapuca. Não podia perder a chance, não podia deixar de se testar e ver até onde a disciplina a havia elevado, porém, ela sabia, a tênue rede de segurança não sustenta todo o peso de sentimentos antigos. Ir para falhar, para saber que todo o auto-controle era mentira, para doer. Até que ponto a resignação da dor de amor deve persistir? Até onde ela aprendeu e até onde ela insistiu no vazio óbvio? Amar é doer. Mas é também paz de espírito e feridas fechadas. Qual valeria depois dos anos em silêncio?


O elevador chegara ao térreo, entrou no táxi, o motorista a interrogou pelo retrovisor e, sem resposta, pegou um papel amarrotado:



"a central disse que era pra Gávea. pra qual rua?"



Silêncio. A luz do poste piscou, gotas de chuva correram pelo vidro, o motorista encarava, ansioso por encerrar a noite.


"não, não. é pro flamengo. mudei de idéia."



Ainda não era a hora de se colocar em dúvida, mas já era tempo de honrar os cacos colados.


19 novembro 2008

A primeira vez a gente nunca esquece...

Demorei pra entender como funcionava essa questão de selo, troféu, carimbo, prêmio... mas agora que aprendi toda a etiqueta bloguística para tal tipo de cerimônia, exponho aqui meu Oscar!! Dado por uma mocinha muito importante cujas palavras são de uma leveza insustentável. Muito Obrigada, querida! Metade disso não seria sem você! (toca a música e eu tenho que me despedir bem rápido) Beijo pro meu pai, minha mãe, pros meus irmãos, pro cachorro e especialmente pra você!







E, como também aprendi: prêmios são sempre divididos! Portanto, este Oscar também vai pra uma mocinha cinematográfica que já foi até minha co-pilota, Marcela Bê do "Catavento e Cotovia"

30 outubro 2008

Do diário de Suelen Gueiras


...Ando com nojo dos corretos. Que fique claro, dos corretos, não dos certos. Os primeiros não sabem que erram, não admitem, não vêem. Os outro, os certos, erram. Eu? Eu sou um erro. Quem somos nós se não nossos erros acumulados e as tentativas redentoras de consertá-los? Eu sou um erro e me corrijo a cada momento não para ser perfeita, mas para ser exata e é justamente essa busca que me eleva aos céus. Eu acerto com meus erros porque cometo-os com amor e, assim, diante dessa raça de corretos, me construo tão mais forte. Esses tipos tão limpos, elegantes e admiráveis, aquilo que todos querem ser. Os lustra-móveis da sociedade. Mestres do distanciamento, do olhar de esguelha.

Os corretos se agarram no efêmero, aos gritos, fúrias, xingamentos, os certos dão as mãos à longevidade da lição. Eles não darão o braço a torcer, não serão sutis nem flexíveis muito menos sensatos. Nunca alcançarão os céus e dirão “não acredito em céu” porque nunca viram se não certeza em suas atitudes. Quem erra, vê um mundo debaixo dos pés, um abismo prestes a engoli-lo e então, sabe-se que existe um céu.

Os corretos apontam aquele dedo-inquisição hipócrita. Os certos prenderam tanto os dedos em frestas, gavetas, portas, dobradiças que andam com as mãos nos bolsos. Para os corretos eu quero apontar um dedo na cara bem esticado, rígido, indubitável, incontornável. Para eles eu quero sempre levantar o dedo do meio...

10 setembro 2008

O que há nos caixotes

Agora que não há mais nada aqui, nem cheiro, nem roupa, nem gemido seu. Quando tudo está guardado, a pedido seu, em tantas caixas quanto podem caber as lembranças e seus fragmentos deixados para trás. Todas essas coisas que não farão diferença de novo para você, mas que eu guardo ainda para te ver. Só assim, com embrulhos que nunca mais serão abertos, eu percebo o quão boba fui em não me permitir saudades. Agora você me falta, só agora é muito real. Completamos todos os passos. Finalmente eu racho por você, pela nossa vida, pelas lembranças embaladas que juntam poeira. Enquanto isso não acontecia - percebo hoje - eu não me sentia humana por inteiro. Faltava a dor de crescer em mais este aspecto, o do faltar.

Agora que nada mais seu é meu, temos nossas novas vidas e poderíamos nos desejar boa-sorte não fossem orgulhos. Eu e você viramos lembrança e juntos ganhamos outros prados. Quisera eu que você se sentisse tão triste e leve assim e, então, me entender. Só agora me deixo chorar, pela partida, pelas rachaduras, pelo caminho e você. Aceito o fato, sem infantilidades, que não vai chorar por mim e que terá uma vida tão frutífera quanto a minha.

Dentro das caixas vão ainda uns últimos pedaços de você que existiam como relíquias, mas que, por sanidade, eu me obrigo a transformá-los em restos. Existe uma urgência em nos deixarmos ir. Eu sei agora que estou nas suas caixas enquanto você sai das minhas, cheio de vida, uma última vez, quem sabe.

22 agosto 2008

Krig-Ha Bandolo


O que mudara na casa de Nanda era, principalmente, uma mesinha que ela comprara em uma tarde de surtos. Porém, naquele dia, o mais diferente ali era a presença de Sérgio na sua cama e ela nos braços dele. Ele chegara com um girassol na mão e ela tirou por jogada juvenil lembrar de sua flor preferida. Abancou-se no sofá.

“Mesinha nova?” – perguntou como se o movelzinho fosse um intruso nas lembranças que ele tinha do apartamento – “Não sei se gosto...”

“Comprei pra quebrar na sua cabeça.” – ela pensou e depois apagou, porque ele estava lá, depois de oito meses nebulosos que Nanda preferia esquecer.

Sérgio estava de novo sentado no sofá, nada parecia ter mudado. Os choros e chopps anti-surto com as amigas desvaneceram, as sinucas na Lapa para ter mais o que fazer sumiram, flertes inférteis foram esquecidos, arrependeu-se das noites com outros caras. Ele dizia as palavras certas que quebravam aquela parede de mulher bem resolvida e Nanda voltava a acreditar no amor, na vida a dois, no mundo, na bondade das pessoas, no altruísmo, na política, no "para sempre. Tudo isso vinha na garupa do cavalo branco de Sérgio. Apesar de não transparecer, ela estava pronta para que ele a pegasse pela cintura como os mocinhos do faroeste e a levasse de sua casa no meio de uma cidadezinha empoeirada e quente justo quando os índios estavam para atacar.

Entre elogios e toques delicados, embalado em uma fala mansa e terna, ele falou da vida, dos erros que cometera no trabalho, a mudança precipitada para São Paulo. Contou como tinha sido ruim com a Carlinha porque estava em um momento de confusão emocional e de como terminaram aos trancos e barrancos. Nanda não fazia idéia de quem era Carlinha, mas pelo que entendeu, não queria discutir sobre ela.

“Olha, eu não sei se quero saber da Carlinha, Sérgio. Quero saber porque você está aqui.”

“Veja bem, Nanda, eu errei muito esses últimos tempos... Muito mesmo. Estou tentando consertar.” – Pela primeira vez, ela notou que Sérgio tinha um jeito de bicheiro misturado com neo-malandro da Lapa. Devia ser esse “veja bem” que ele sempre usava.

Ela farejou um pedido de desculpas no meio da frase canastrona. Instintivamente, sabia que ele nunca assumiria que cagara o pau e considerou aquilo o mais próximo que Sérgio chegaria de admitir que errou COM ela. Não gostou, mas considerou que ainda era raiva engarrafada.

Do sofá para a cama foi uma discussão complexa sobre o cabelo estar mais curto ou mais longo do que da última vez que se viram. E o sexo... ah, o sexo... burocrático ao ponto de repartição pública. Nanda se pegou olhando as paredes do quarto e pensando que lilás rapsódia seria uma cor ótima para o novo cômodo.

Quem era aquele homem ali ao lado? Os dedos enrolados nos seus cachos permaneciam os mesmos, as costas largas e o braço tatuado também. Era o Sérgio, ué! - ficava se repetindo. O fisioterapeuta responsável e carinhoso com os pacientes, com apartamento próprio e família legal; o cara que gostava de fazer trilha, correr na Lagoa e tomar suco de clorofila no Leblon, que ela achava lindo, que a tratava bem. Ele estava lá, no cavalo, estendendo a mão. Era hora dela subir, bastava estender a mão e pular. Nunca mais veria os arbustos rolando com o vento, nunca mais a secura da terra. Adeus, índios!

Mas aí, o cavalo deu uma empinada, Sérgio rolou ribanceira abaixo e Nanda lembrou que o cavaleiro destemido era o mesmo com aquela mania de cutucá-la quando queria falar, de fiscalizar seus cigarros, que reclamava do expediente que terminava tarde, que não gostava que ela fosse à sinuca nem às festas que tocavam Madonna mas ao mesmo tempo mulherengo, ciumento ao cubo, com um ar arrogante de garoto-saúde. Era todo igual ao que se lembrava e nada mais do que imaginava para si.

“E agora?” – ele perguntou acariciando suas costas. Ela não quis desviar o olhar para não entregar a dúvida.

“Não sei... tudo meio repentino, né? Nem sei o que você quer direito. Era só me pedir desculpas ou...”

“Nossa reconciliação, ué! Você não entendeu quando eu falei?”

“Quando você falou da Carlinha?! Não, não ficou muito claro, não.”

“Eu quero voltar com você, Nanda. Eu era melhor quando estava com você.”

As palavras de Sérgio pareciam tão longe, tão fora da realidade e aquele girassol na cabeceira tão murchinho. Nanda desviou o olhar para o teto e falou séria:

“Sérgio, eu sou a mesinha da sala.”

“Hã?”

“Se eu te contar tudo o que eu sou agora, você não vai saber se gosta de mim ou não.”

Era verdade. Depois de oito meses, ela era uma espiral, crescendo e girando. Mudara de emprego e agora vivia sem dinheiro, andara em uns cantos muito finos e em umas sinucas chinelonas, conhecera gente nova, ouvia outras músicas, passou a correr na Lagoa, aprendeu duas coisas na cozinha, esqueceu de casar, de como se vive a dois. Nanda não fugia mais dos índios.

“Claro que não, Nanda! Eu tenho certeza que ainda gosto de você, eu não tinha noção do quanto era feliz!”

“Me dá o telefone aqui, Sérgio.”

“Pra quê?”

“Preciso pintar o apartamento.”

O que havia mudado na casa de Nanda era, principalmente, Nanda.

21 julho 2008

Do diário de Suelen Gueiras

"... suspeito que rasgaram minhas cartas e a declaração que fiz num papel de presente. Não me espantaria se estivessem no lixo ou na minha portaria. Por via das dúvidas, tenho saído pela porta de serviço... Estranho nos entregarmos por tanto tempo, errar e acertar e existir quem erre e acerte conosco para que, no momento em que tudo isso deveria contar, ser apenas mais um punhado de coisas a ser deixado para trás...


...Em alguns dias: Califórnia! O lugar onde o sol é que nem aqui, mas é outra coisa. Melhor assim, o sol daqui não anda dos mais aconchegantes e parece que a cidade me esqueceu, vira o rosto quando eu passo. Não a culpo, não há mesmo como entender as escolhas dos outros que nunca faríamos. Deixo que respire, areje. Faz um sol frio e não lembro de um inverno tão bonito mas não tenho espírito para apreciar. Acordo pensando em dias velhos, durmo querendo coisas frescas e tudo o que há no meio é batalha em mim para acalmar esse meu lado tranqüilo que pôs os dentes de fora. Se ora mando à putaqueopariu é para apenas calar tristeza logo depois...



E rezo:

Senhor,
dê ouvidos aos gritos de raiva,
dê quietude de alma,
dê razão aos corações partidos
dê luz aos olhos cegos de ira
dê harmonia aos que julgam e sensatez aos que calam.

aos que se crêem corretos de postura dê um erro e um juiz tão grave quanto eles.
dê a mim a tranquilidade para uma vida quieta e a paciência para aguardar este fim.

Por todos estes dias..."

25 junho 2008

Mecânica Celeste

A humanidade quer ser lembrada. Tanto e de tal forma que se angustia, se enterra sob a tarefa em vez de buscar dias mais frescos. O velocista, o empresário, o presidente, a mãe, o homem-bomba, todos almejam apenas a memória, querem ficar retidos atrás dos olhos, numa rede diáfana chamada lembrança. É difícil não ver na memória a possibilidade de uma vida eterna, de existir para sempre como o audaz, intrépido, apaixonante, gênio... e, de todos os momentos em que buscamos essa solução para nossos dias contados, somos mais insaciáveis quando amantes.

Ali, quietos, guardados em memórias, os amantes querem se resguardar do mundo e existir em uma vida doce. Queremos, mais que todos, permanecer. Manter-nos ao alcance dos olhos, insistindo para que as fotografias não sejam arrancadas, os presentes devolvidos. Desejamos ser parte da vida do outro, como a fotografia velha que, colada ao porta-retratos, todos têm cuidado em arrancar. Até aqueles de nós que se viam como amantes seguros de si, sem medo de dores nem quedas, vêem-se arrepiados ao pensarem na possibilidade de serem lavados de enxurrada pelas sensações de uma chuva fria e nova. Então, agarramo-nos à esperança de termos sido especiais suficientes para restarmos de pé.

Permanecer dentro de alguém é o remédio para a dor da perda e a cura para todo o fim. Os mais ingênuos sabem sem perceber, os descrentes só entendem nas últimas latas d’água, que, o que sobra é lembrança e apenas isso nos ancora para os dias seguintes. No fim, queremos todos sobreviver na história, seja ela do mundo ou de outrem. Queremos essa nesga de luz que é saber que estamos vivos e bem, não só em nós, mas em outros olhos que nos vêem invariavelmente sorrindo, felizes, de mãos dadas como se, no mundo, nada pudesse nos apagar.

17 junho 2008

Conversa de Elevador

Ela exalava um aroma leve de sabonete, shampoo sem frescuras e um toque de suor porque eram duas da tarde de um dia de Dezembro. Por um momento perdi o fôlego deslumbrado com os movimentos das mãos que equilibravam perfeitamente bolsa, pasta, celular, chaves e uma sacola de compras. Óculos escuros na ponta do nariz, camisa moderninha. Apostei que era designer e eu só não tive vergonha da minha situação de vagabundo voltando da locadora porque ela tinha um all-star tão fudido quanto o meu. O celular tocou e ela abriu um sorriso ao atender.

“Olá.” – eu disse antes de atender o celular e ele respondeu balançando a cabeça. Bonito, esculhambado era um fato, mas alugar Cronenberg lhe dava pontos. Ficou parado enquanto eu lutava para administrar o telefone e tudo o mais que eu carregava. Olhou meu decote em vez de oferecer uma mão. Ainda morava com a mãe, uma pena.

A conversa não demorou, logo que a porta fechou a ligação caiu. A sacola de compra também. Apanhei com rapidez e respondi o “de nada” com simpatia.

Derrubei a sacola de propósito. Era hora de começar uma conversação. Tinha o mesmo sorriso de antes.

“Você mora aqui?” – eu perguntei sabendo qual seria a resposta porque: 1) aquela mulher era colorida demais para o Edifício Rei Salomão e 2) eu não tinha o tipo de sorte de habitar a menos de três estações do metrô de uma menina como aquela. Com certeza, estava visitando a avó. Prédios de Copacabana têm dessas, vovós com netas interessantes.

“Moro.” – definitivamente não era a resposta que eu esperava. Mas, quem está reclamando, certo? O sorriso dela lembrava o da Sandrinha, minha primeira namoradinha.

Sabia! Não lembrou, mas enfim... eu era outra pessoa naquela época... vamos dar uma colher de chá ao rapaz.

“Eu não sabia...” – gaguejei.

“Já tem umas três semanas.”

O elevador chegou e ela abriu a porta.

“Espera! Em que apartamento?”

“No mesmo de sempre, Alexandre!”

Aposto que ele não vai entender nada. Vamos deixar a porta fechar na cara de bobo dele. “Como você sabe o meu nome?” – eu ouvi a voz dele abafada pela porta do elevador.
“Presta Atenção, Alexandre! Você mora no nono!” – eu respondi.

Quem era essa menina, meu Deus? A Sandrinha voltou a minha cabeça, mas ela nunca morou no mesmo prédio que eu!

Não mudou muita coisa. Alguns quilos a mais, mas até aí, eu também. Tocou o doze só pra me ver subir, como antigamente.

Toquei o nove quando a porta fechou por inteiro. O doze era mesmo só para vê-la subir.

11 maio 2008



"...Quando ele levantar e sair, vai começar a chover essa chuva de verão guardada há mais de uma semana. Eu não vou acompanhá-lo com os olhos porque ele vai sair pela porta mais ensolarada e se desfazer no contra-luz. Esse, portanto, é o único momento para retirar tudo o que eu disse, mas, tão certo quanto o aguaceiro que vai desabar quando ele sair, eu não vou fazer isso.


Ele deveria entender que eu tenho uma tendência a heroísmos inúteis, a arrependimentos e evito julgamentos, não gosto de dedos na cara. Então, eu faço as coisas dizendo que assim é o correto e elas podem até ser, mas em mim, quando o vejo, existe apenas o errado. É errado ser tão certo assim. E isso é um sinal dos fortes para que me levante junto com ele e diga que eu o quero. De uma forma tão carnal quanto o verbo querer pode ser, daquele querer de tornar as noites curtas demais. Se eu pudesse, parava de me fazer de forte, parava de me arrepender e brigar e lhe dava pescoço, ombros, cheiro e abrigo para a chuva que vai cair. Mas, tão exata quanto qualquer ciência que ele possa vir a dominar, eu não vou fazer isso.

Ele levanta e sorri. Eu também. Concordamos em tudo, por mais que seja a minha menor parte a comandar toda a conversa. Pequena, porém convincente, minha parte maior é ligeiramente suscetível e, quiçá, covarde. No reflexo dos óculos escuros meus olhos fogem de mim.

Como eu imaginei, ele vira uma silhueta escura na saída. Venta lá fora, cheiro forte de chuva. Penso que é a ultima vez, agarro a bolsa, daria tempo para correr, pará-lo e beijá-lo na chuva. Porém, por mais que funcione nos filmes, não vou fazer isso. Eu me aproximo da porta de saída sem ter mais o que fazer. Há em mim um misto de dever cumprido e grito entalado, a desolação de ter feito algo certo quando preferia ter escorregado como uma mera mortal, o cansaço por querer sempre o equilíbrio.

Piso na rua e chove. A chuva é para mim, sem dúvida, não por causa de qualquer teoria sobre erros e probabilidades, mas porque hoje eu mereço. Fria, sem rumo certo, cheia de vento, batendo as portas e janelas que encontrar. Tudo sobre a minha cabeça de uma vez só, uma verdade sobre a minha personalidade a cada lampejo e rugido. As poucas quadras até minha casa ficarão maiores desse jeito e eu posso imaginar o quanto... e eu nem uso guarda-chuva..."

15 abril 2008

Do Diário de Suelen Gueiras


"...cansei dessas coisas que transbordam entre nós mas não saciam...”

14 abril 2008

Uma página sem cinco frases...

Qual a quinta frase da página 161 do livro mais próximo de mim? Quando olhei não tinha livro nenhum perto de mim, então, corri pro mais próximo da cabeceira da cama e a página 161 não tinha cinco frases! No lugar da quinta frase há uma grande ilustração de Alice de mãos dadas a um Grífon e eu torci pra chegar logo nessa página... Ok, segundo livro mais próximo da cabeceira.

"A propósito, é típica a entrée que reportamos adiante: Você não deve fazer nada, eu faço tudo."

Fellini descreve como age um "clown" branco em seu livro "Fazer um filme" e eu também torci pra chegar logo nessa página.

E, como eu gosto de brincadeiras entre blogs, passo adiante para Bernardo (que já me ensinou essa brincadeira antes, mas sabe como é, livros mudam...) e Daniel, se eles tiverem a curiosidade e o interesse em continuar...

14 março 2008

A Juke Box Life

A primeira apropriação indevida de Anna aconteceu em Abril de 2005. As anteriores não tinham o mesmo valor e não eram exatamente apropriações e sim, um grande senso de identificação. Anna apropriou-se da faixa dez do disco “Revolver”, dos Beatles. "For no one" caíra em seus joelhos em dia turbulento e choroso e tomou-a para si como um gato abandonado. Foi como tudo começou. Paul McCartney cantava o momento dela com todas as letras, a forma como se referia aos amores que haviam passado, como achava que não precisava deles. Anna era a dona da música, ela era a mulher triste que decidira por outros caminhos. Depois de "For no one", Paul McCartney passou a ser simplesmente, Paul.

A partir daí tudo cresceu. Anna não se apropriava só de músicas, mas também de discos inteiros e trechos curtos. Odiava certos versos de “Help!”, refletiu-se em “If I fell” e já tinha passado pelo mesmo de “I´ve Just Seen a Face”. Esgotou os Beatles e seguiu para outras discografias e logo tinha uma centena de apropriações que falavam por ela, ou lembravam por ela, ou choravam por ela. Quando foi largada quis cantar “Walk Away” e comemorava vitórias com “Do you want to”. Fazia planos para cantarem “Cheek to Cheek” debaixo de sua janela. Ela seguia adiante, incansável: sua mãe era “A noite do meu bem” e seu pai era “I am mine” e ele lhe dera "All Star". “João e Maria” era sua infância, “Sem compromisso”, do Chico, deu a Chicão. “I will survive” era sua virada de mesa, o "White Album" talvez ela nunca esquecesse, “A seta e o Alvo” era sua maior discussão de relação.

A lista aumentou, sem espaço para tops 5, best of e greatest hits. Todas no mesmo patamar até o som escangalhar e um silêncio habitá-la por meses até ser expulso em grito. Hoje, Anna parou seu carro no vão central da ponte Rio-Niterói, ela tinha apenas 10 minutos antes que a viatura chegasse para tirá-la dali. Saiu do carro com um pacote preto agarrado ao peito e se debruçou no parapeito. O som tocava uma melancólica chamada “A comet appears” de um CD que um amigo lhe dera. Nenhuma das canções lhe disse nada nem o CD ficou associado para sempre ao amigo. Ela vinha perdendo o dom para apropriações. Jogou o pacote preto no abismo e tentou ouvir qualquer barulho. Silêncio.

Era, de certa forma, um suicídio. Todos os seus CD´s, todos os mais importantes, todas as canções e versos estavam lá dentro e sumiram no preto da baía. Anos de sentimentos alheios tomados para si, anos de dormência. Ela poderia cantarolar “Confortably Numb” mas nunca seria a mesma dormência que ela sentia. Era uma grande devolução de sentimentos que nunca foram realmente dela.

Encerrava a mania de deixar que falassem por ela, aquela sensação de que, se cantasse a plenos pulmões, falava melhor o que sentia. Pura mentira, fingimento e estupidez. Gritar, fazer pose, ela percebeu, não fariam por ela mais que rouquidão. Não era catarse, era esconderijo. Escondia-se atrás das melodias achando que era ela mesma. Não era. Fim de caso.


A viatura chegou.

“Moça, por favor, se afaste da mureta.”

“O senhor veio me prender pelas minhas apropriações indevidas?” – o guarda apenas piscou sem entender que alguns bons anos da vida de Anna já afogavam em água turva.

“A senhora não pode parar o carro na ponte.”

“Eu sei. Já estou indo.”

Bateu a porta, a música já estava no fim. “There´s a numbness in your heart and it’s growing...” – ela desligou. Voltou para casa em silêncio, leve e lúcida. Parecia uma desintoxicação, a remoção de um grande peso. Ela sabia exatamente como se sentia e ninguém explicaria melhor que ela e ninguém sentiria o mesmo. Anna era única agora, uma canção nova em folha que só ela sabia cantar.

12 março 2008

Princípio da Incerteza

(versão feminina do texto "Joules", de Daniel Pfaender)

Ele já estava no bar quando cheguei, vícios ao redor: cerveja, cigarros, a pose e a morena da mesa em frente que sacudia madeixas prensadas em chapinha. Sentei bloqueando a morena. Serviu-me uma cerveja e um sorriso bonito e pouco dissimulado. Era sempre desse jeito, o sorriso convidava a sentar e logo havia aquela armadura de segurança que o fazia ter os movimentos mais firmes e determinados que eu já vi e que, no fim, se transformava em um certo esnobismo encantador. Nossos encontros eram assim: eu retraía e ele avançava naquela tática de homem que sabe o que quer, eu me deixava levar. Eu o admirava, engolia minhas meninices, caminhava mais que as pernas para aceitar suas ditas modernidades. Mas naquela noite estava cansada. Cansada do jogo, da espera, de olhar pra cara dele, de ter que ensaiar em mim 25 outras pessoas para saber qual se encaixava melhor com o humor do dia. Naquela noite só havia uma pessoa no bar e, no decorrer da conversa, ela não parecia nunca combinar com ele.

Eu falava de projetos, evolução, vídeo game e arte, ele ensaiava megalomanias com gestos amplos, dizia do quanto já tinha vivido, do último livro que tinha lido e da pena que era o mundo perder Fidel. Eu procurava o homem de antes e só encontrava um homem agradável qualquer. Discorreu sobre como gostava da liberdade e da pena que tinha das mulheres que se aproximavam imaginando poder namorá-lo. Disse-lhe que não tinha mais quinze anos e que não tinha necessidade dessas transgressões juvenis de “não-tenho-ninguém-e-sou-melhor-assim.”

“ah que é isso, você que é mais tradicional.” - ele zombou.

“ou você que não viu que tem 27 anos e não precisa mais da pose de menino pegador.” – eu retruquei.

Ele calou e eu percebi que algo dentro dele não soube me responder. Pela primeira vez faltaram palavras e não me vi acuada e sem jeito. Havia um espaço infinito diante dele que nunca tinha sido ocupado por mim, me espalhei por ali, cresci naquele vácuo. Sorri. Ele se desculpou, disse que precisava ir, pagou a conta e deu um beijo inacreditavelmente indeciso para o homem dos gestos exatos e do olhar determinado. Talvez tenha ido procurar a resposta direta que ele saberia me dar antigamente, talvez nunca mais sentássemos para uma cerveja. Tarde demais, estava dito e claro que algo havia desviado do caminho e, muito provavelmente, era eu.

Apenas duas coisas eram importantes ali, no entanto. A primeira era que eu deixei que ele me visse por inteira e ele não pareceu gostar. Devia, pois não é sempre que aposento as outras 25 para sentar só na mesa do bar. Faço isso com quem realmente paga a pena. A segunda era que, agora que sabia que podia ser dois, o homem seguro e o menino, ele poderia voltar mais agradável.

Eu, com certeza, teria opções à altura dos dois.



* O princípio da incerteza diz que é impossível determinar conjuntamente a posição e a velocidade de uma partícula.

06 março 2008

A Leoa e o Domador

-Alô?

[Dandan, dandandan, dandandan... chamada a cobrar, para aceitá-la continue na linha após a identificação...]

-É a Vââââânia!!!!

-Alô? Alô?

-Vanderson?

-Oi, Vaninha!

-Vanderson que porra é essa de dormir na minha casa, tomar café e não lavar os pratos?!

-Ah, desculpa mô, mas eu tava com pressa...

-Pressa nada, Vanderson! Deixou a toalha molhada em cima da cama e a cueca no banheiro. Tá pensando o quê, Vanderson?!

-Em casar com você.

-Se é assim eu aceito.

20 fevereiro 2008

Não nasci blasé

1 – calor
2 – férias
3 – preguiça
...
... a lista de motivos para não escrever seguia ameaçadora. Cogitei fechar o blog, meses sem linhas novas me preocuparam. Desanimei. Procurei assuntos, encantos... Passaram dia e mês. Relampejou, secaram as poças, ventou no vale, blocos passaram, sambei, bebi, ri com os irmãos, fiz novos amigos, encontrei os antigos, desloquei o ombro. Tudo isso não rendeu mais que um inventário do que eu deixava escapar da minha escrita.

Estava claro que, de repente, faltavam coisas em cantos antes completos. Vi-me vazia. Pior, alheia ao que pudesse ser chamado mundo, fosse interior ou exterior. Tudo resultado de uma mal-fadada indiferença para afastar velhas mágoas (nunca fui boa na prática do desinteresse). Escondi-me das dores e das saudades, dos arrependimentos e arrepios em troca de dias mais pacíficos, uma paz de espírito temporária e artificial que levou minhas letras embora. Quis não me importar e assim, quem sabe, não doer. Não doeu, também não sorriu. Invejei quem dá de ombros para vida e tentei ser blasé, mas não tive sucesso algum.

Calei por meses até sobrar tanto espaço e silêncio dentro de mim, que implorei uma pequena frustração ou passatempo para que as rodas voltassem a girar. Achava que sentia falta de vícios secretos quando, na verdade, eram saudades apenas de mim. Nesses dias eu sou uma outra que desagrada aos próprios nervos. Parada, submissa, assustada, procrastinadora e sem inspiração. Não duvido que ainda cale dois ou três meses até essa dormência passar.

Até lá, faltam textos e abano moscas por aqui.

05 fevereiro 2008

Metalinguagem pra vida...*

Julio – Cronenberg no CCBB! diz:
Nina!!! E aí, você ainda “tá indo”?

Nina – lost to the light and the loving we need… diz
Tô…

Julio – Cronenberg no CCBB! diz:
sinta-se beijada na testa... cinco vezes

Nina – lost to the light and the loving we need… diz:
obrigada. beijos na testa são sempre felizes


...

Nina – lost to the light and the loving we need… diz:
você já reparou que eu desconsidero praticamente qualquer vírgula que possa existir numa conversa?

Julio – Cronenberg no CCBB! diz:
desconsidera na hora de falar ou na hora de ler?

Nina – lost to the light and the loving we need... diz:
de escrever

Julio – Cronenberg no CCBB! diz:
deve ser porque não faz falta

Nina – lost to the light and the loving we need diz:
exatamente. vírgulas atrasam a vida. o negócio ou é reticências ou é ponto-parágrafo...

Julio – Cronenberg no CCBB! Diz:
reticências?

Nina – lost to the light and the loving we need... diz:
É... gosto da sensação de continuidade... sem contar que no momento estou extremamente reticências... e ponto parágrafo também.

Julio – Cronenberg no CCBB! diz:
o que é ser ponto parágrafo? dar um fim a um parágrafo e começar outro do zero?

Nina – lost to the light and the loving we need diz:
isso

Julio – Cronenberg no CCBB! diz:
mas o que falta pra cortar dois pontos da reticências e transformá-las em ponto parágrafo?

Nina – lost to the ligh and the loving we need… diz:
coragem... tudo uma questão de coragem! e o pior é que cortando dois pontos das reticências elas viram só ponto final e isso é uma coisa muito determinista que não me agrada. eu acho que o próximo parágrafo está escondido num hiato criativo

Julio – Cronenberg no CCBB! diz:
então você não sai das reticências porque não há palavras novas à vista?

Nina – lost to the light and the love we need… diz:
não, não é bem assim. Porque mesmo que não haja palavra nova a vista, tem o parágrafo em si, o distaciamento da margem... tudo isso já é um bom começo. o problema é o medo de virar ponto final e não seguir pro parágrafo

Julio – Cronenberg no CCBB! diz:
Nina, você tem quase infinitas paginas em branco! em se tratando de gente, sinais de pontuação são tão mutáveis quanto a gente mesmo.
o que fica são os usos criativos que você encontra pros verbos, as mudanças de foco narrativo, as metáforas "boa sacada"...


...

Julio – Cronenberg no CCBB diz:
estou falando besteira demais?

Nina – lost to the light and the loving we need... diz:
não, de jeito nenhum. fico pensando se a gente está se entendendo mesmo depois disso tudo ou é só pra continuar a poesia, mas eu acho que não... acho que a gente tá se entendendo sim

Julio - Cronenberg no CCBB! diz:
sim, acho que estamos sim.

*uma conversa quase inteiramente real...
 

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