26 dezembro 2006

Como o Jorge soltou-se da coleira e se perdeu.

“completamente embriagado perdi meu cachorro Jorge,
como vou voltar pra casa se só ele sabe o caminho?” *

A noite pedia bebida, pedia música alta para que não ouvissem seus pensamentos, pedia um descolamento do mundo real. A vida inteira ficara na porta, o ano que passara estava preso entre roletas e seguranças. Vida mesmo era só aquele inconstante de luzes que trazia lembranças às duas amigas. Vida era suor e dança que não seguia o ritmo da música das caixas de som e sim, uns batuques na boca do estômago.

Diziam que eram meninas más porque bebem sem parar e sem motivo. Meninas más bebem assim e bebem também para esquecer. Faz parte da malvadeza assumir isso. As doses se repetiram com dedos firmes e rápidos que emborcavam copos no meio do sal e do limão. Companhia para um desafio. As mãos afrouxaram as coleiras. A noite pedia e elas também.

O cabelo se desfaz, o corpo sua, a roupa cola. As músicas, aos poucos, se tornam propriedades particulares. São estrofes da vida delas cantadas em um momento em que a vida estava suspensa lá do lado de fora, sendo severamente avaliada. Para cada dia havia uma estrofe diferente. As mãos cansaram de segurar as coleiras.

As duas saem, sentam-se no meio-fio, suadas, pernas estiradas, sapatos nas mãos. Nenhuma vergonha nisso. Mãos dadas, dia claro. A vida sentou ao lado. Estava tão claro que foram capazes de perceber que, por mais que afastassem pensamentos e tristezas, suas mentes não deixariam que se enganassem. Elas perdem para si mesmas, percebendo o inevitável no raiar do dia. As noites nunca serão sempre assim e os dias seguintes nunca serão dormentes de ressaca.

Riram de um forró besta no rádio de um podrão. “A burrinha da felicidade nunca se atrasa... Inexoravelmente.” – dizia Santana. Olharam as mãos vazias, àquela altura Jorge ia longe e ligeiro, já quase pelas bandas da Monsenhor Tabosa.
*música "Procura-se Jorge" da banda Coçadores del Chaco

02 dezembro 2006

Esfinges

“Não vou nem te perguntar porque sei que não vou entender. Ninguém entende as mulheres mesmo.”
“Odeio essa história de que ninguém entende as mulheres. Se vocês parassem por um momento de acreditar nisso perceberiam que nós somos de um entendimento bem fácil.”
“Não acredito nisso. Prefiro assim, gosto muito desse mistério das mulheres.”
“Como você é cego... não tem mistério nenhum!”
“Claro que tem! As contradições, as esquisitices, esse negócio de vocês nunca saberem o que querem, se um cafajeste ou um cara bacana, família ou trabalho, carinho ou porrada. Tudo isso. É que nem montanha-russa.”
“Você acredita que toda mulher quer um cara bacana?”
“E não quer?”
“Toda mulher quer um cara que a leia da forma certa. Linhas e entrelinhas. Basta prestar atenção. Bacana é pouco e simplista. Não tem essa de mistério, se vocês percebessem que o único mistério que existe é artificial, cuidadosamente moldado por mãos sensatas e unhas com esmalte... Esse é o mistério divertido e o único que vale a pena ser desvendado. É construído por nós, pura diversão. Para ambos os lados. Qualquer outro mistério é invenção, lenda, uma história que te contaram e contaram pro seu pai e pro seu avô e a todos os homens da sua linhagem até o sapo. E vocês acreditaram.”
“Mas o mistério que vocês constroem é o mesmo no qual nós acreditamos.”
“Esse mistério que você disse, esse de ninguém entender as mulheres, é imposto. Várias mulheres são um pouco perturbadas porque aprenderam que são esfinges, Monalisas, mulheres do brinco de pérola e precisam fazer jus à fama. Elas se enrolam tentando criar uma aura de incompreensão e acabam sem saber o que querem. A vida seria bem mais fácil se os homens acreditassem em mulheres normais, sem segredos. Vocês, homens, prorrogam as nossas esquisitices!”
“Nossa, você consegue tornar o divertido tão teórico. As mulheres adoram ser assim.”
“É verdade, é bem divertido ter que ouvir que as suas reclamações não fazem sentido porque se é mulher, não poder se estressar porque é culpa dos hormônios. Vocês estão confundindo mistério com esquisitice, um nem sempre é o outro. Não sou esquisita nem me esforço pra isso. Mas alguém disse pra uma ruiva canhota da idade média que ela era misteriosa como uma esfinge, ela gostou e cá estou eu, fadada a ser incompreendida! Entendeu?”
“Entendi, mas não acredito que exista uma mulher que não seja esquisita no mundo..”
“Prefere acreditar que nunca vai entender as mulheres?”
“Prefiro.”
“Sabe porque você prefere isso? Porque assim tem uma desculpa para todas as merdas que você faz.”
“Aí que você se engana, não faço merda: abro a porta do carro, dou carinho, atenção, converso, vou ao cinema, elogio o cabelo, discuto relação, leio muito, trepo, transo, fodo. E faço amorzinho. Nenhuma merda.”
“Taí a merda-mor.”
“Não entendi.”
“É porque, no fundo, a única verdade disso é que a maioria de vocês faz merda, mesmo os que fazem tudo certo. Ninguém quer ser um mistério. Já basta a genética humana de nunca nos entendermos com nossos eu-líricos, consciências, egos ou seja lá o nome que você queira dar. A gente já não dá conta de manter a unidade interna, ás vezes é tudo caco ou, no mínimo, uma pontinha lascada. Tudo o que a gente quer do mundo, veja bem, é colo e compreensão. Aí a gente sai pro mundo e a metade dele diz “querida, é assim porque você é mulher. Ninguém entende vocês, se fodam aí. Vivam com isso e não se esqueçam de ensinar às filhas de vocês. Torna o trabalho muito mais fácil.””
“Você é esquisita demais. Tá naqueles dias?”
“Ah, Deus.”

22 outubro 2006

Cair

Tinha perdido o chão ou o teto, não sabia mais. Não sabia mais se o mundo tinha virado de ponta-a-cabeça ou se estava apenas levemente pendido como se todo o peso das coisas do coração fizesse o corpo tender para um lado. De qualquer maneira, chão ou teto, virado ou inclinado, pouco importava: o que marcava era que estava longe de qualquer realidade.

A velha questão do “se jogar” vinha a sua mente naquele momento. Porque existe o "se jogar" suicida, depressivo e obscuro. E existe aquele atirar-se eletrizante. O “se jogar” que escolhera era este último. Não havia nenhum risco suicida nela; apenas esse gosto pela queda. A vertigem de tempos indefinidos num curto espaço de tempo definido.

Jogou-se, então, e dessa forma passou a fazer parte dos que caem. E estes sempre acham que o fundo está mais distante do que realmente está. Ledo engano, o fundo está sempre lá. No caso dela, foi por muito tempo, muito pouco, muito perto. Quase como se alguém tivesse puxado o colchão que apararia sua queda um pouquinho mais para longe. Perdeu por pouco, o que não serve de consolo. Perdemos e ponto. Nos jogamos e ponto. Imutável. A queda terminava de súbito, tão repentina quanto havia começado.

Agora estava ali, chegando ao fundo, tudo muito parado naquele momento em que o corpo tem o primeiro contato com o chão, em que ainda não há a dor física, só o fim do frio na barriga. O fim daquele vento que levava os cabelos para cima. O fim da queda mesmo, onde os que caem relembram a vertigem e o coração fica cheio de um alento suave, se preparando para uma dor que todos os que caem sabem que vão ter e que é proporcional à altura da qual se joga. Na verdade, o que todos os que caem sabem é que o que dói mais não é bater contra o chão, e sim, o fim da queda.

20 setembro 2006

Analogia para um momento

Sabe quando você finalmente resolve sair com uma pessoa?

Fica-se horas enfurnada em um quarto, abrindo portas de armários entre peças de roupas, entre dúvidas e frios na barriga, cenas imaginadas e relembradas. E, quando as roupas parecem chegar ao fim, seu armário se mostra sem fundo e lhe apresenta mais opções, mais dúvidas. O peito aperta porque você tem certeza que não vai dar tempo. Ainda falta o cabelo. E os sapatos. Você fica e persevera, experimentando, fazendo comparações, querendo fazer tudo certo. Tudo certo. Até que as peças se combinam. Repentinamente, como em toda cabeça de mulher. Tudo certo, decidido. A roupa que você imaginava, que você acredita certa.

Sabe quando você sai na rua depois disso tudo?
Você se sente bem, maravilhosa, segura de que daquela forma não existe a possibilidade de algo dar errado. Está tudo certo.

E aí um pombo caga na sua cabeça.

Sabe quando um pombo caga na sua cabeça?
Você fica um instante parada na rua sem ousar olhar para cima, sem se mover, achando que de onde veio aquilo pode vir mais. Você treme de tristeza e raiva. Talvez você chore um pouco. Ou muito. Sua segurança escorrendo pela roupa cuidadosamente escolhida, a roupa em que nada poderia dar errado. Um pombo cagaria na roupa na roupa do Batman?

Então, você pensa, ainda tremendo de tristeza e raiva, com aquela certeza quase palpável, que perdeu o seu encontro. Na sua cabeça existem apenas duas opções: você pode cancelar o seu encontro, voltar pra casa, chorar de raiva e tristeza e trocar de roupa. Você nunca mais andará pelo Largo do Machado. Você não vai mais encontrar aquela pessoa.

Ou, você pode entrar no primeiro banheiro que encontrar e tentar consertar o acontecido. Mas você nunca vai ter certeza se tudo ficou no lugar certo como estava antes, ficará sempre procurando uma mancha ou um indício de que o pombo cagou na sua cabeça. Seria válido enfrentar o desconforto de saber que um pombo cagou na sua cabeça, estragou a sua roupa certa e você não tem a certeza se está apresentável ou não para a pessoa? Seria válido sair do banheiro mesmo com vários pombos lá fora que poderiam arruinar o resto do seu dia?

É fato que nenhuma das duas opções lhe agrada, nem o extremismo de não arriscar, nem o conformismo de sofrer um incômodo calada. Você continua parada no meio do caminho olhando pros lados, sem saber o que fazer, dando passos sem direção. O pombo voa embora. Talvez você ainda esteja chorando.

Agora eu te faço uma pergunta: e se Dona Cleide que “trás” a pessoa amada em 3 dias tivesse dito a você que o pombo cagaria na sua cabeça, você sairia de casa mesmo assim?

09 setembro 2006

Nas prateleiras

Esse texto começa com uma metáfora, uma imagem. Imaginem que nossa memória é uma prateleira, ou melhor, uma infinidade delas, arquitetonicamente bem iluminadas e de extremo bom gosto. Imagem clichê, bastante cinematográfica, incrivelmente quinta série. Às vezes não gosto dela pela simplicidade, mas é, para mim, uma imagem quase perfeita da minha memória. Não exatamente da minha memória inteira porque as memórias de coisas muito remotas, muito chatas ou simplesmente dos recados que eu tenho que dar saem, em algum momento das prateleiras bem arrumadas e vão para o quartinho da bagunça. Nas prateleiras ficam certas... coisas. Um conjunto de coisas pra ser exata, entre imagens, sentimentos, retalhos e saudades. E pessoas.

Sem percebermos, nessas paralelas nas paredes da gente, guardamos pessoas e tudo aquilo que gira ao redor delas. Aquelas que nos fazem sorrir, não importa o quão ruim foi o tempo que passamos ao lado delas. São aquelas que, sem querer, fizeram com que alterássemos nossos pensamentos, nossos olhos e ouvidos. Mudaram um pouco o mundo, nos fizeram andar mais, ler mais, querer mais. Correr atrás de um livro ou de um filme. Rir ou chorar muito mais.

As pessoas das prateleiras são doces e extremamente amargas pela ausência, distância ou silêncio porque uma vez na prateleira é quase impossível sair. É um lugar de puro vislumbre de um tempo que se foi e guarda-se apenas a essência como se guarda o primeiro dente ou a primeira rosa. As prateleiras guardam os amores perdidos, vencidos, impossíveis, sentidos, terminados, inacabados...

Os homens nas prateleiras são aqueles que, se nossa vida fosse um filme, este terminaria não muito feliz e, apesar de tudo, apareceria um crédito em letras neoclássicas dizendo “10 anos depois” e nós dobraríamos uma esquina e encontraríamos justamente com um deles e seríamos felizes. Mas vida não é filme - eu que o diga - ou seria uma desempregada ad eternum. Vida é assim mesmo, triste várias vezes e entre as tristezas, alegrias imensas. Os homens nas prateleiras raramente dobram as nossas esquinas mais de uma vez.

Lá ficam as lembranças de um momento que em nos sentimos capazes de carregar o mundo nas costas sem ajuda nenhuma, apesar da ajuda estar logo ao lado. Ali fica o tempo que gostamos de lembrar e apreciamos como vitórias mesmo, troféus. São os sorrisos de qualquer coisa a mais que nos ocorre.

A beleza das prateleiras é essa capacidade que todos nós temos de gostar ou amar tanto que o sofrer da perda, da impossibilidade ou de qualquer outro motivo fica simplesmente como conseqüência da vida e não como punição. Deixa de ser amargo como era no início e passa a fazer parte da sua memória sem dores.

É meio como um arrepio que te obriga a sacudir o corpo todo pra passar. As pessoas nas prateleiras são assim, arrepios na gente, obrigando a vida toda a se mover.

06 agosto 2006

Estética

Dizem que é coisa de doido sonhar colorido, mas é só assim que sonho. Preto-e-branco só quando colabora com a narrativa...

02 agosto 2006

Do que é feito com os cacos


Naquele dia de inverno, quando eu cheguei no apartamento, Rebecca estava quebrando as poucas coisas que tinha contra as paredes. Dona Adelaide, a vizinha de lenço rosa na cabeça, passou por trás da minha estupefação, deu uma olhadela curiosa para a cena caótica e murmurou que era uma briga de Rebecca com ela mesma, melhor seria se eu não me metesse.

Minha amiga agarrava as cortinas e as arrancava para limpar as lágrimas do rosto. Ela não me viu (ou não quis me ver) enquanto murmurava num modo vidrado que não agüentava mais o mundo e que seu corpo doía. Ouvi o monólogo sentada em um banquinho salvo da tormenta e observei bem as palavras de D. Adelaide de não me meter.

Rebecca arrancou os quadros das paredes, alegando que não queria olhares de pena sobre ela, tirou os vinis das capas, atirou-os como “freesbis” enquanto cantava versos misturados. E, quando tudo estava pelo chão, sentou-se um canto vazio e seus soluços diminuíram e as palavras desconexas calaram. Ela chorava silenciosamente quase como se não chorasse, apenas pondo para fora lágrimas e lágrimas.

“Dói-me um homem por todo o corpo.*” – Rebecca falou e eu não sei se foi pra mim, mas a entendi perfeitamente. Porque, se por fora minha amiga estava inteira, por dentro ela havia desabado sobre as pernas finas e não há nada pior que a inteireza do mundo para uma pessoa desse jeito. Por isso os cacos no chão. Fui embora. Deixei Rebecca no meio dos cacos enquanto, aos poucos, sua serenidade retornava.

Uma semana depois D. Adelaide me telefonou e disse-me que fizera bem em não impedir a menina ruiva de quebrar o que queria. “Consolos só ajudam a curto prazo, eles não curam a dor que só nós sabemos.” – esclareceu a vizinha.

Disse-me também que no dia anterior Rebecca varrera o apartamento, jogara os cacos pelo vão das escadas de serviço e que ficara horas ouvindo o eco da queda (mesmo quando não havia mais nenhum ruído para ouvir) sentada em um degrau. Depois, voltou para casa e pôs para tocar um disco arranhado em uma música sobre um pássaro negro e uma noite. No fim da tarde ela jogou o disco pela janela.

No início da noite Rebecca catou seus manuscritos sobre dor, tristeza e vingança e juntou-os aos papéis sobre a felicidade e saudades boas e guardou tudo em uma caixa com um nome de homem em um canto separado para isso.

Chorou, então, por horas a fio, um choro que a vizinha não soube, em todos os seus anos de observação, decifrar. Disse-me que parecia um choro de recomeço, talvez.

Rebecca passara a madrugada perambulando pela casa com passos preguiçosos e sandálias currolépes, lambendo o corpo para curar certas feridas e dores. Às seis da manhã ela telefonou para D. Adelaide e pediu-lhe um novo capacho para sua porta. A vizinha atendeu, solícita. Às seis e meia a ruiva saiu de casa ainda descabelada e sem casaco, apesar do dia de inverno, e foi tomar café na padaria em frente.

“Não se preocupe.” – disse a vizinha prendendo um grampo ao lenço rosa da cabeça – “Agora está tudo bem.”
*J.L.Borges disse, eu apenas tomei a liberdade de parafrasear.

20 julho 2006

Central-Gávea ou algumas impressões meio soltas...


Abri um sorriso ao ver o rosto enorme do ônibus vermelho apontar no início da rua. Não tinha a faixa amarela que indicava o ar-condicionado. Melhor assim, já estava com saudades de ir sentada na janela com o ventão no rosto. Talvez eu tenha um quê de alma de cachorro em mim. Eles sabem aproveitar as coisas bo(b)as da vida.


Rodei a roleta. Na bandeira do Flamengo atrás do motorista vinha escrito “Deus é Pai e torce Mengo”. Eu ri, todo pai é Tricolor assim como todo avô é América. Já tinha visto aquele trocador? Era aquele que tinha o cartão de autorização amarrado na mão com um elástico amarelo e tinha as pontas dos dedos sempre meio roxas? Não, era o mesmo que me mandara ler a bíblia da última vez que saltei no Centro. Culpa do cabelo colorido, talvez. Ou do meu pedaço de alma canina. Nunca saberei. Quem sabe não acho as respostas na bíblia como ele mesmo me disse?


Sentei no banco e um buraco no estofado fez um longo “pfffff...” enquanto se adequava ao meu peso. Abri a janela e quase enganchei a orelha do trabalhador honesto que cochilava na minha frente. Preciso melhorar, não é a primeira vez que faço isso.


Espalhei-me pelo banco, espaçosa mesmo, não queria que nenhum idoso sentasse do meu lado. Não por qualquer preconceito, mas por puro instinto de proteção aos mais velhos. Eu sou muito estabanada ao levantar do ônibus, quando esqueço que tenho que saltar, então... quase levo-os comigo. Os xales de tricô enganchados nos chaveiros da mochila e os tropeços nos Vulcabrás 757 incrivelmente engraxados. Deus, ainda bem que velhinhos não xingam...


O vento começara com cheiro de chuva. Ventão mesmo, não era só vento de movimento. Vento de chuva de Verão, dessas que faz o mundo correr de repente. Do lado de fora o mundo correu junto comigo, fugindo da chuva. As ruas perderam as linhas retas dos meios-fios e dos postes com o cartaz da “Dona Cleide que trás(sic) a pessoa amada em 2 dias”. Dona Cleide é mais rápida que a concorrência.


Enfim tudo virou um grande borrão que Monet passaria a vida inteira pintando. Meu mundinho inteiro correndo na minha janela como se tivesse perdido o ônibus. Aquele cheiro de cidade molhada. Da onde vem o cheiro de terra molhada quando chove na Presidente Vargas? E eu ali dentro enquanto tudo meio que se “liquidificava” na chuva de verão ao meu redor.


Botafogo, praia, a cabeça do Getúlio, a Praça Paris das “Meninas”, a “AviniPresdenteTônioCarlus”, as barcas, CCBB, Candelária... Puxei a cordinha pra saltar porque apertar o botão não tem a menor graça. Ônibus não é elevador. Óbvio que a escada terminava em poça, quem anda de ônibus sabe que todas as escadas terminam nas piores poças.


Comecei a me molhar, agora eu também corria com o mundo ao redor do 157. A volta seria péssima, debaixo d´água. O Rio de Janeiro não foi feito pra dias de chuva. E pior, não me deixarão abrir a janela.

16 julho 2006

Dúvida

Se eu digo "açúcar" você sente o gosto doce na sua boca?

10 julho 2006

Mau-Humor

Oito da manhã. A noite anterior fora digna do clichê "poderia ter ido dormir sem essa". Os pensamentos só cessaram às 4, quase 5.

Niterói ainda estava nos lençóis quando cheguei. Sala cheia, uma volta pelo centro ao meio dia, apresentação de tarde. Uma perspectiva desgraçada para a segunda feira que mal começava. Tomei meu lugar quietinha, sonolenta, obedecendo ao professor como uma ginasial. Tudo isso e uma sala cheia de calouros. Calouros são sempre tão empolgados... São 8 da manhã, o que há de feliz na vida nesse horário? Eles conversam, riem e eu quieta lidando com o meu mau-humor matinal além do mau-humor com a vida em geral.

(O bom humor matinal é o responsável por, no mínimo, 60% dos pensamentos irados e vingativos do um mau-humorado em toda a sua vida. O bom humor alheio praticamente abre as portas da alfândega infernal para os mau-humorados.)

Palmas começam. Palmas?!?! Os calouros cantam "Parabéns pra você!" às 8 da manhã! Corrigindo: Eles cantam às 8 da manhã! Não importaria muito o quê, qualquer música me irritaria.

Alou! Mais respeito com a manhã de merda dos outros! Quer parar de assoprar essa maldita corneta?! Não, não tem graça!

Ai Deus, talvez uma chuva melhorasse o meu dia...

Olhos muito verdes...

O nome dela era Lídia. Ele sabia porque prestara atenção na conversa dela enquanto a encarava com seus olhos muito verdes. Nesse dia ela olhou timidamente as estantes tortas do sebo e andou pelos corredores estreitos com medo de derrubar as pilhas de livros. Ele achou-a muito magra.

Na segunda visita, Lídia concentrou-se na literatura latina. “Garcia-Marquez, Cortázar e Borges...” – ele pensou com desdém – “Típico!”. Piscou e desviou sua atenção para o livro que escolhera. Lídia levou um Gabo.

Uma semana depois ela voltou com uma lista de livros. Ele estava escondido no último corredor e ouviu sua voz de menina. “Livros de faculdade.” – resmungou para si enquanto ouvia todos os itens da folha da jovem – “Vai ler um capítulo de cada e todos terminarão com a sina dos quase-lidos. Um cemitério de livros quase-lidos essa menina deve ter em casa!”

Certa manhã Lídia passou e ajoelhou-se na porta, ao lado das caixas de vinis. Nessa manhã, por um acaso, ele estava tão perto dela que pôde ver que seus olhos negros eram até lindos. E, enquanto ela não apareceu para a quarta ou quinta visita, ele sentiu falta dos olhos pretos que observavam as lombadas sem parecer notar todo o conhecimento que elas guardavam.

Porém, quando Lídia reapareceu e foi até a sessão de filosofia, ele se arrependeu de toda a saudade que sentira. Tinha realmente acreditado que ela mudaria seu estilo depois de freqüentar aquele mundo de cultura que era a sua livraria, mas parecia-lhe que não. Lídia já era velha demais (ele lhe deu uns 22 anos) e insistia na mesmice e nas leituras garantidas. “Ficará com aquele conhecimento previsível e corriqueiro para o resto da vida... Esse jeito juvenil de deixar os dedos correrem pelas capas dos livros achando que poderiam ter algo a dizer a ela... porque não cresce e desiste?”

Nas visitas seguintes Lídia espirrou, deixou as revistas caírem no chão tropeçou pela trigésima vez no banquinho do corredor. Toda a sua juventude aborrecia os seus anos de leitura e intelecto no meio da poeira de um sebo parado no tempo. E, belo dia, no meio dos seus suspiros insatisfeitos, percebeu que ela estava com seus olhos pretos exatamente em cima dele, num interesse repentino. De repente, o coração pesado e culto demais descompassou-se numa timidez disfarçada de raiva. “Que que é que olha tanto pra cá? Vai perguntar qualquer coisa estúpida, tenho certeza. Vai perguntar porque estou aqui todos os dias! Porque eu gosto, ouviu?! Porque tudo isso aqui é meu! Porque não leva logo o doido do Baudrillard e volta para a sala de aula? Aposto que vai querer este meu livro. Tão previsível! Pois digo logo que não dou. Fingirei até que não ouço! Não me venha com esses olhões pretos deslumbrados com a cultura do mundo. Não dou e não saio daqui!”

No meio do curto caminho Lídia olhou para trás e ele não entendeu mais nada. “Ela está virando a cara para mim?!” - e pôde ouvir a voz de menina dela falar:
“Moço, o gato arranha? Ele está bem em cima do Barthes...”

"É só cutucar que ele sai."


01 julho 2006

De espelhos e trapezistas

O chefe do parque de diversões deu uma risadinha nervosa quando Caligari puxou a fita de cetim que inaugurava a sua mais nova atração. Depois que o sonâmbulo não dera certo o velho partira pelo mundo a procura de um novo sucesso para o parque itinerante de Frau Heinz. Tentara diversas coisas: pigmeus, gigantes, poodles amestrados, um rapaz chamado Kaspar Hauser e até mesmo um velho com umas asas enormes achado em uma ilha do Caribe. Tudo dera errado, até que Caligari lembrou-se de uma atração de sua infância e correu os livros do mundo procurando um manual de como montá-la.


Depois de três estações ele retornou, marcou uma reunião com Frau Heinz e obteve permissão para montar, na parte mais distante da feira itinerante, sua mais nova atração. Em três dias a enorme tenda azul com franjas roxas foi erguida e na frente de sua porta principal estava amarrada com um laço extremamente metódico, a fita de cetim vermelho que Caligari puxava agora tendo, a sua volta, todo o resto da feira, incluindo a jovem filha de Frau Heinz que fazia um maravilhoso número no trapézio e nas fitas verticais nas manhãs de domingo.


O laço desmanchou-se e caiu no chão. Não houve fogos ou banda. A filha de Frau Heinz segurou a respiração, a roupa de lantejoulas brilhando. Caligari abanou a cartola numa reverência que quase fez seu queixo tocar o chão e ao se levantar pediu um voluntário. A filha do chefe levantou a mão prontamente, sacudindo-a freneticamente. Não que outra pessoa quisesse ir, muito pelo contrário. Ninguém teve coragem de entrar na tenda azul, a não ser a menina das lantejoulas.


Caligari tomou a menina pelas mãos muito respeitosamente enquanto seu pai sentia palpitações dentro do colete apertado. “Tire as sapatilhas, criança.” – pediu Caligari – “Pés apertados afetam diretamente o pensamento lúcido.” – e a menina obedeceu. Depois amarrou-lhe uma venda sobre os olhos e levou-a para dentro da tenda.


“Vou tirar sua venda.” – Caligari avisou e quando a trapezista abriu os olhos só havia o escuro e um corredor que fazia um caminho muito maior que a própria tenda, apesar de não subir, descer ou fazer curvas. Era um enorme corredor que não era mais do que a própria trapezista que andava por ele.


No local onde o corredor acabava havia um espelho e ao redor dele, dispostos em círculos concêntricos de forma que nenhum atrapalhasse o outro, milhares de outros espelhos com milhares de trapezistas, de todas as formas, sob luzes inexplicáveis. Reflexos nunca iguais e nunca diferentes em espelhos ainda mais variados e bem no centro, ela, a dona de todos eles.


“Aqui estão os seus reflexos, criança.” – o velho disse no seu ouvido, mas nenhum espelho mostrou o reflexo de Caligari, apenas milhares de trapezistas em roupas de lantejoulas que variavam de cor, corpo, cabelos, atitudes – “Aqui eles são guardados secretamente, convivem, conversam, se animam e, na maior parte do tempo debatem. Tudo aqui é você, do corpo do centro aos reflexos, do veludo negro das paredes ao tapete do chão, é o que está nos vidros e diante deles. Esta é Casa de Espelhos, criança.”


“Pode olhar agora.” – Caligari sussurrou no ouvido da menina e não havia mais espelhos. A tenda não tinha mais que dez metros de diâmetro e uma luz azulada. Um ponto brilhava no chão. A trapezista abaixou-se para ver o que era.


“Não, criança!” – o velho gritou – “É isso que faz toda a mágica!”


A filha do chefe do parque largou o caco de espelho quebrado no chão. Não sem antes piscar um olho e fazer um pequeno aceno ao reflexo que a encarava.

 

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