02 agosto 2006

Do que é feito com os cacos


Naquele dia de inverno, quando eu cheguei no apartamento, Rebecca estava quebrando as poucas coisas que tinha contra as paredes. Dona Adelaide, a vizinha de lenço rosa na cabeça, passou por trás da minha estupefação, deu uma olhadela curiosa para a cena caótica e murmurou que era uma briga de Rebecca com ela mesma, melhor seria se eu não me metesse.

Minha amiga agarrava as cortinas e as arrancava para limpar as lágrimas do rosto. Ela não me viu (ou não quis me ver) enquanto murmurava num modo vidrado que não agüentava mais o mundo e que seu corpo doía. Ouvi o monólogo sentada em um banquinho salvo da tormenta e observei bem as palavras de D. Adelaide de não me meter.

Rebecca arrancou os quadros das paredes, alegando que não queria olhares de pena sobre ela, tirou os vinis das capas, atirou-os como “freesbis” enquanto cantava versos misturados. E, quando tudo estava pelo chão, sentou-se um canto vazio e seus soluços diminuíram e as palavras desconexas calaram. Ela chorava silenciosamente quase como se não chorasse, apenas pondo para fora lágrimas e lágrimas.

“Dói-me um homem por todo o corpo.*” – Rebecca falou e eu não sei se foi pra mim, mas a entendi perfeitamente. Porque, se por fora minha amiga estava inteira, por dentro ela havia desabado sobre as pernas finas e não há nada pior que a inteireza do mundo para uma pessoa desse jeito. Por isso os cacos no chão. Fui embora. Deixei Rebecca no meio dos cacos enquanto, aos poucos, sua serenidade retornava.

Uma semana depois D. Adelaide me telefonou e disse-me que fizera bem em não impedir a menina ruiva de quebrar o que queria. “Consolos só ajudam a curto prazo, eles não curam a dor que só nós sabemos.” – esclareceu a vizinha.

Disse-me também que no dia anterior Rebecca varrera o apartamento, jogara os cacos pelo vão das escadas de serviço e que ficara horas ouvindo o eco da queda (mesmo quando não havia mais nenhum ruído para ouvir) sentada em um degrau. Depois, voltou para casa e pôs para tocar um disco arranhado em uma música sobre um pássaro negro e uma noite. No fim da tarde ela jogou o disco pela janela.

No início da noite Rebecca catou seus manuscritos sobre dor, tristeza e vingança e juntou-os aos papéis sobre a felicidade e saudades boas e guardou tudo em uma caixa com um nome de homem em um canto separado para isso.

Chorou, então, por horas a fio, um choro que a vizinha não soube, em todos os seus anos de observação, decifrar. Disse-me que parecia um choro de recomeço, talvez.

Rebecca passara a madrugada perambulando pela casa com passos preguiçosos e sandálias currolépes, lambendo o corpo para curar certas feridas e dores. Às seis da manhã ela telefonou para D. Adelaide e pediu-lhe um novo capacho para sua porta. A vizinha atendeu, solícita. Às seis e meia a ruiva saiu de casa ainda descabelada e sem casaco, apesar do dia de inverno, e foi tomar café na padaria em frente.

“Não se preocupe.” – disse a vizinha prendendo um grampo ao lenço rosa da cabeça – “Agora está tudo bem.”
*J.L.Borges disse, eu apenas tomei a liberdade de parafrasear.

7 comentários:

Stephanie disse...

Não sei porque, mas a sua Rebecca me lembrou a Buendía.

Sabe, eu já vi Carol fazer uma cena como tipo guardar as lembranças numa caixa e chorar num canto. No dia seguinte ela saiu para colher flores.

Borges é um dos caras!

beijos com saudades!

Bernardo Tonasse disse...

"Não há nada pior que a inteireza do mundo para uma pessoa desse jeito. Por isso os cacos no chão."

E esse espaço de comentários vai se tornando cada vez mais uma coletânea de tudo que adoro nesse blog.

Marcela Bertoletti disse...

Nossa q texto lindo!
Como vejo verdade nessa ideia de cacos numa caixa, que representa alguem que se amou.
Muito lindo, msm.
Bjs

Anônimo disse...

Caramba, Mari!
Foi uma grata surpresa encontrar esse blog!
Todos os textos estão ótimos... mas, se me permite, esse último está espetacular.
Parabéns mesmo.
Beijos!

Anônimo disse...

É... mais uma vez vc conseguiu.
Está extremamente realista!
Conseguiu que eu nao so visualizasse como relembrasse e nao pude evitar de comparar a tua historia com a minha experiencia de vida!
Muito bom mesmo!
Ja esta com cara de livro!
Agora nao tem volta, so sossego qnd tiver um exemplar autografado na mao! :D
bjs

Stephanie disse...

Amiga,
realmente, havia uns pedaços de alguéns ali. Coisas que eram minhas, outras que fui ganhando, perdendo, aprendendo por aí.

Não sei se existem pessoas inteiras. Penso que há quem tenha pedaços muito grandes e emendas mal feitas. Sei lá, cimenta, ingessa, solda. Invés de ficar flexível, endurece. Por isso, quebram.

Eu continuo em busca de novos retalhos. E espero que suas aventuras sejam inspiradoras.

beijos!

Anônimo disse...

Acho melhor a gente juntar, antes que alguém passe por aqui e rasgue o pé...

Beijos...

 

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