Abri um sorriso ao ver o rosto enorme do ônibus vermelho apontar no início da rua. Não tinha a faixa amarela que indicava o ar-condicionado. Melhor assim, já estava com saudades de ir sentada na janela com o ventão no rosto. Talvez eu tenha um quê de alma de cachorro em mim. Eles sabem aproveitar as coisas bo(b)as da vida.
Rodei a roleta. Na bandeira do Flamengo atrás do motorista vinha escrito “Deus é Pai e torce Mengo”. Eu ri, todo pai é Tricolor assim como todo avô é América. Já tinha visto aquele trocador? Era aquele que tinha o cartão de autorização amarrado na mão com um elástico amarelo e tinha as pontas dos dedos sempre meio roxas? Não, era o mesmo que me mandara ler a bíblia da última vez que saltei no Centro. Culpa do cabelo colorido, talvez. Ou do meu pedaço de alma canina. Nunca saberei. Quem sabe não acho as respostas na bíblia como ele mesmo me disse?
Sentei no banco e um buraco no estofado fez um longo “pfffff...” enquanto se adequava ao meu peso. Abri a janela e quase enganchei a orelha do trabalhador honesto que cochilava na minha frente. Preciso melhorar, não é a primeira vez que faço isso.
Espalhei-me pelo banco, espaçosa mesmo, não queria que nenhum idoso sentasse do meu lado. Não por qualquer preconceito, mas por puro instinto de proteção aos mais velhos. Eu sou muito estabanada ao levantar do ônibus, quando esqueço que tenho que saltar, então... quase levo-os comigo. Os xales de tricô enganchados nos chaveiros da mochila e os tropeços nos Vulcabrás 757 incrivelmente engraxados. Deus, ainda bem que velhinhos não xingam...
O vento começara com cheiro de chuva. Ventão mesmo, não era só vento de movimento. Vento de chuva de Verão, dessas que faz o mundo correr de repente. Do lado de fora o mundo correu junto comigo, fugindo da chuva. As ruas perderam as linhas retas dos meios-fios e dos postes com o cartaz da “Dona Cleide que trás(sic) a pessoa amada em 2 dias”. Dona Cleide é mais rápida que a concorrência.
Enfim tudo virou um grande borrão que Monet passaria a vida inteira pintando. Meu mundinho inteiro correndo na minha janela como se tivesse perdido o ônibus. Aquele cheiro de cidade molhada. Da onde vem o cheiro de terra molhada quando chove na Presidente Vargas? E eu ali dentro enquanto tudo meio que se “liquidificava” na chuva de verão ao meu redor.
Botafogo, praia, a cabeça do Getúlio, a Praça Paris das “Meninas”, a “AviniPresdenteTônioCarlus”, as barcas, CCBB, Candelária... Puxei a cordinha pra saltar porque apertar o botão não tem a menor graça. Ônibus não é elevador. Óbvio que a escada terminava em poça, quem anda de ônibus sabe que todas as escadas terminam nas piores poças.
Comecei a me molhar, agora eu também corria com o mundo ao redor do 157. A volta seria péssima, debaixo d´água. O Rio de Janeiro não foi feito pra dias de chuva. E pior, não me deixarão abrir a janela.