20 julho 2006

Central-Gávea ou algumas impressões meio soltas...


Abri um sorriso ao ver o rosto enorme do ônibus vermelho apontar no início da rua. Não tinha a faixa amarela que indicava o ar-condicionado. Melhor assim, já estava com saudades de ir sentada na janela com o ventão no rosto. Talvez eu tenha um quê de alma de cachorro em mim. Eles sabem aproveitar as coisas bo(b)as da vida.


Rodei a roleta. Na bandeira do Flamengo atrás do motorista vinha escrito “Deus é Pai e torce Mengo”. Eu ri, todo pai é Tricolor assim como todo avô é América. Já tinha visto aquele trocador? Era aquele que tinha o cartão de autorização amarrado na mão com um elástico amarelo e tinha as pontas dos dedos sempre meio roxas? Não, era o mesmo que me mandara ler a bíblia da última vez que saltei no Centro. Culpa do cabelo colorido, talvez. Ou do meu pedaço de alma canina. Nunca saberei. Quem sabe não acho as respostas na bíblia como ele mesmo me disse?


Sentei no banco e um buraco no estofado fez um longo “pfffff...” enquanto se adequava ao meu peso. Abri a janela e quase enganchei a orelha do trabalhador honesto que cochilava na minha frente. Preciso melhorar, não é a primeira vez que faço isso.


Espalhei-me pelo banco, espaçosa mesmo, não queria que nenhum idoso sentasse do meu lado. Não por qualquer preconceito, mas por puro instinto de proteção aos mais velhos. Eu sou muito estabanada ao levantar do ônibus, quando esqueço que tenho que saltar, então... quase levo-os comigo. Os xales de tricô enganchados nos chaveiros da mochila e os tropeços nos Vulcabrás 757 incrivelmente engraxados. Deus, ainda bem que velhinhos não xingam...


O vento começara com cheiro de chuva. Ventão mesmo, não era só vento de movimento. Vento de chuva de Verão, dessas que faz o mundo correr de repente. Do lado de fora o mundo correu junto comigo, fugindo da chuva. As ruas perderam as linhas retas dos meios-fios e dos postes com o cartaz da “Dona Cleide que trás(sic) a pessoa amada em 2 dias”. Dona Cleide é mais rápida que a concorrência.


Enfim tudo virou um grande borrão que Monet passaria a vida inteira pintando. Meu mundinho inteiro correndo na minha janela como se tivesse perdido o ônibus. Aquele cheiro de cidade molhada. Da onde vem o cheiro de terra molhada quando chove na Presidente Vargas? E eu ali dentro enquanto tudo meio que se “liquidificava” na chuva de verão ao meu redor.


Botafogo, praia, a cabeça do Getúlio, a Praça Paris das “Meninas”, a “AviniPresdenteTônioCarlus”, as barcas, CCBB, Candelária... Puxei a cordinha pra saltar porque apertar o botão não tem a menor graça. Ônibus não é elevador. Óbvio que a escada terminava em poça, quem anda de ônibus sabe que todas as escadas terminam nas piores poças.


Comecei a me molhar, agora eu também corria com o mundo ao redor do 157. A volta seria péssima, debaixo d´água. O Rio de Janeiro não foi feito pra dias de chuva. E pior, não me deixarão abrir a janela.

16 julho 2006

Dúvida

Se eu digo "açúcar" você sente o gosto doce na sua boca?

10 julho 2006

Mau-Humor

Oito da manhã. A noite anterior fora digna do clichê "poderia ter ido dormir sem essa". Os pensamentos só cessaram às 4, quase 5.

Niterói ainda estava nos lençóis quando cheguei. Sala cheia, uma volta pelo centro ao meio dia, apresentação de tarde. Uma perspectiva desgraçada para a segunda feira que mal começava. Tomei meu lugar quietinha, sonolenta, obedecendo ao professor como uma ginasial. Tudo isso e uma sala cheia de calouros. Calouros são sempre tão empolgados... São 8 da manhã, o que há de feliz na vida nesse horário? Eles conversam, riem e eu quieta lidando com o meu mau-humor matinal além do mau-humor com a vida em geral.

(O bom humor matinal é o responsável por, no mínimo, 60% dos pensamentos irados e vingativos do um mau-humorado em toda a sua vida. O bom humor alheio praticamente abre as portas da alfândega infernal para os mau-humorados.)

Palmas começam. Palmas?!?! Os calouros cantam "Parabéns pra você!" às 8 da manhã! Corrigindo: Eles cantam às 8 da manhã! Não importaria muito o quê, qualquer música me irritaria.

Alou! Mais respeito com a manhã de merda dos outros! Quer parar de assoprar essa maldita corneta?! Não, não tem graça!

Ai Deus, talvez uma chuva melhorasse o meu dia...

Olhos muito verdes...

O nome dela era Lídia. Ele sabia porque prestara atenção na conversa dela enquanto a encarava com seus olhos muito verdes. Nesse dia ela olhou timidamente as estantes tortas do sebo e andou pelos corredores estreitos com medo de derrubar as pilhas de livros. Ele achou-a muito magra.

Na segunda visita, Lídia concentrou-se na literatura latina. “Garcia-Marquez, Cortázar e Borges...” – ele pensou com desdém – “Típico!”. Piscou e desviou sua atenção para o livro que escolhera. Lídia levou um Gabo.

Uma semana depois ela voltou com uma lista de livros. Ele estava escondido no último corredor e ouviu sua voz de menina. “Livros de faculdade.” – resmungou para si enquanto ouvia todos os itens da folha da jovem – “Vai ler um capítulo de cada e todos terminarão com a sina dos quase-lidos. Um cemitério de livros quase-lidos essa menina deve ter em casa!”

Certa manhã Lídia passou e ajoelhou-se na porta, ao lado das caixas de vinis. Nessa manhã, por um acaso, ele estava tão perto dela que pôde ver que seus olhos negros eram até lindos. E, enquanto ela não apareceu para a quarta ou quinta visita, ele sentiu falta dos olhos pretos que observavam as lombadas sem parecer notar todo o conhecimento que elas guardavam.

Porém, quando Lídia reapareceu e foi até a sessão de filosofia, ele se arrependeu de toda a saudade que sentira. Tinha realmente acreditado que ela mudaria seu estilo depois de freqüentar aquele mundo de cultura que era a sua livraria, mas parecia-lhe que não. Lídia já era velha demais (ele lhe deu uns 22 anos) e insistia na mesmice e nas leituras garantidas. “Ficará com aquele conhecimento previsível e corriqueiro para o resto da vida... Esse jeito juvenil de deixar os dedos correrem pelas capas dos livros achando que poderiam ter algo a dizer a ela... porque não cresce e desiste?”

Nas visitas seguintes Lídia espirrou, deixou as revistas caírem no chão tropeçou pela trigésima vez no banquinho do corredor. Toda a sua juventude aborrecia os seus anos de leitura e intelecto no meio da poeira de um sebo parado no tempo. E, belo dia, no meio dos seus suspiros insatisfeitos, percebeu que ela estava com seus olhos pretos exatamente em cima dele, num interesse repentino. De repente, o coração pesado e culto demais descompassou-se numa timidez disfarçada de raiva. “Que que é que olha tanto pra cá? Vai perguntar qualquer coisa estúpida, tenho certeza. Vai perguntar porque estou aqui todos os dias! Porque eu gosto, ouviu?! Porque tudo isso aqui é meu! Porque não leva logo o doido do Baudrillard e volta para a sala de aula? Aposto que vai querer este meu livro. Tão previsível! Pois digo logo que não dou. Fingirei até que não ouço! Não me venha com esses olhões pretos deslumbrados com a cultura do mundo. Não dou e não saio daqui!”

No meio do curto caminho Lídia olhou para trás e ele não entendeu mais nada. “Ela está virando a cara para mim?!” - e pôde ouvir a voz de menina dela falar:
“Moço, o gato arranha? Ele está bem em cima do Barthes...”

"É só cutucar que ele sai."


01 julho 2006

De espelhos e trapezistas

O chefe do parque de diversões deu uma risadinha nervosa quando Caligari puxou a fita de cetim que inaugurava a sua mais nova atração. Depois que o sonâmbulo não dera certo o velho partira pelo mundo a procura de um novo sucesso para o parque itinerante de Frau Heinz. Tentara diversas coisas: pigmeus, gigantes, poodles amestrados, um rapaz chamado Kaspar Hauser e até mesmo um velho com umas asas enormes achado em uma ilha do Caribe. Tudo dera errado, até que Caligari lembrou-se de uma atração de sua infância e correu os livros do mundo procurando um manual de como montá-la.


Depois de três estações ele retornou, marcou uma reunião com Frau Heinz e obteve permissão para montar, na parte mais distante da feira itinerante, sua mais nova atração. Em três dias a enorme tenda azul com franjas roxas foi erguida e na frente de sua porta principal estava amarrada com um laço extremamente metódico, a fita de cetim vermelho que Caligari puxava agora tendo, a sua volta, todo o resto da feira, incluindo a jovem filha de Frau Heinz que fazia um maravilhoso número no trapézio e nas fitas verticais nas manhãs de domingo.


O laço desmanchou-se e caiu no chão. Não houve fogos ou banda. A filha de Frau Heinz segurou a respiração, a roupa de lantejoulas brilhando. Caligari abanou a cartola numa reverência que quase fez seu queixo tocar o chão e ao se levantar pediu um voluntário. A filha do chefe levantou a mão prontamente, sacudindo-a freneticamente. Não que outra pessoa quisesse ir, muito pelo contrário. Ninguém teve coragem de entrar na tenda azul, a não ser a menina das lantejoulas.


Caligari tomou a menina pelas mãos muito respeitosamente enquanto seu pai sentia palpitações dentro do colete apertado. “Tire as sapatilhas, criança.” – pediu Caligari – “Pés apertados afetam diretamente o pensamento lúcido.” – e a menina obedeceu. Depois amarrou-lhe uma venda sobre os olhos e levou-a para dentro da tenda.


“Vou tirar sua venda.” – Caligari avisou e quando a trapezista abriu os olhos só havia o escuro e um corredor que fazia um caminho muito maior que a própria tenda, apesar de não subir, descer ou fazer curvas. Era um enorme corredor que não era mais do que a própria trapezista que andava por ele.


No local onde o corredor acabava havia um espelho e ao redor dele, dispostos em círculos concêntricos de forma que nenhum atrapalhasse o outro, milhares de outros espelhos com milhares de trapezistas, de todas as formas, sob luzes inexplicáveis. Reflexos nunca iguais e nunca diferentes em espelhos ainda mais variados e bem no centro, ela, a dona de todos eles.


“Aqui estão os seus reflexos, criança.” – o velho disse no seu ouvido, mas nenhum espelho mostrou o reflexo de Caligari, apenas milhares de trapezistas em roupas de lantejoulas que variavam de cor, corpo, cabelos, atitudes – “Aqui eles são guardados secretamente, convivem, conversam, se animam e, na maior parte do tempo debatem. Tudo aqui é você, do corpo do centro aos reflexos, do veludo negro das paredes ao tapete do chão, é o que está nos vidros e diante deles. Esta é Casa de Espelhos, criança.”


“Pode olhar agora.” – Caligari sussurrou no ouvido da menina e não havia mais espelhos. A tenda não tinha mais que dez metros de diâmetro e uma luz azulada. Um ponto brilhava no chão. A trapezista abaixou-se para ver o que era.


“Não, criança!” – o velho gritou – “É isso que faz toda a mágica!”


A filha do chefe do parque largou o caco de espelho quebrado no chão. Não sem antes piscar um olho e fazer um pequeno aceno ao reflexo que a encarava.

 

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