28 janeiro 2009

Santa Chuva

J,

Os nossos dias começaram aqui. Faz um calor infernal (aí também, com certeza) e, dia sim, dia não dá uma chuva por voltas das 18:00. Venta por cima do Cristo, um vendaval com cheiro encorpado de terra molhada. Eu espero na varanda ou na rua, como fazíamos quando éramos pequenos, mas não como mais biscoito-de-vento enquanto aguardo. Nada mudou: sombrinhas, gente correndo, aquele povo que fica debaixo dos toldos olhando o resto se molhar. Ainda existe dentro de mim aquela sensação de ser um anjo que aprova a ira divina.

Porém, J, a última chuva é o que me faz escrever. Porque por mais que eu sinta sua falta, que seu rosto seja outro na minha cabeça e nossas palavras tenham terminado em amenidades desnecessárias que eu quero evitar, aquela chuva me lembrou você e de como teríamos dado as mãos e corrido até a Lagoa sentindo cada gota descer pela curva das nossas costas. Aquele era um temporal de respeito J, que abraça, sobe a saia e não quer saber de regras. Como você.

Caminhei até a Lagoa naquele cortinado cinzento e percebi que hoje não tenho mais medo de um raio me pegar na ciclovia. Lá, sentado em um hidrante, magro e escorrido pelo aguaceiro, estava um rapaz que tinha os olhos claros como se recuperasse uma razão há muito esquecida. Algo nele se iluminava e eu não quis deixá-lo sozinho, não queria que ele fosse embora nunca mais. Há anos esperava por alguém naquele caos, na chuvarada certa. Ele me perguntou – não ria J – se eu estava lavando a alma, mas ele é um principiante e eu o perdoei pela besteira e lhe ensinei o que você me falou: que não tem porra nenhuma a ver com a alma! É entregar o seu corpo ao caos, não ter medo dos galhos caírem nem dos postes, nem dos carros baterem nem de raio, nem da pneumonia depois. Só corpo. Tremer, bater queixo, sentir a roupa pesar, os dedos enrugarem. Só gente. Ele me deu a mão. Andamos e éramos os donos do mundo, conversamos até secar. Não falta mais ninguém agora.

Eu espero que a estiagem aí dê folga e você leve seu menino para o primeiro banho de chuva. Ele tem seus olhos aguados.

S.

7 comentários:

Anônimo disse...

Entrei aqui pelo Fantástico mundo do Rafa e me surpreendi, tanto lá quanto cá com textos muito bons, com sentimento e força. Parabéns. Que bom que o pessoal mais novo continua renovando a literatura.
Saudações, Fernando.

Anônimo disse...

Olhe quem apareceu!

Muito bonito o texto, Mari!

Beijos.

Stephanie disse...

e justo ontem eu relia o Wilde, que disse: 'não há nada para curar a alma como os sentidos' - e acho que esse papo de lavar e tal é um baita clichê, mas no fim das contas, pra haver alma, é preciso saber curtir o cheiro, a grossura dos pingos, a sensação do chão molhado, sem medo de gripe, raio, como disse S. muito bem - e quem não entende nada disso tem mais é que pegar seu guarda-chuvas e reconhecer que não saba nada de porra nenhuma. ou aprender a se molhar.

beijo beijo beijo

Anônimo disse...

Gostei!

1 disse...

Gostei dessa idéia de aprovar a ira divina, as vezes me vejo assim, não exatamente como um anjo, mas aprovando e torcendo por essa mesma ira.
Gostei também da relação da chuva com o corpo e o caos, uma grande bagunça.
Enfim, gostei do blog, pena que escreva tão de vez em quando.
Até mais.

Flor disse...

Lindo esse post. Me fez lembrar que aqui na cidade tá um calor de matar e um monte de concreto que faz a gente pensar que tá numa panela de pressão. Bom feriado.

Bernardo Tonasse disse...

Há tempos que eu não gostava tanto de algo que você escrevia, Mariola! Um abraço forte em você! :)

 

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