A primeira apropriação indevida de Anna aconteceu em Abril de 2005. As anteriores não tinham o mesmo valor e não eram exatamente apropriações e sim, um grande senso de identificação. Anna apropriou-se da faixa dez do disco “Revolver”, dos Beatles. "For no one" caíra em seus joelhos em dia turbulento e choroso e tomou-a para si como um gato abandonado. Foi como tudo começou. Paul McCartney cantava o momento dela com todas as letras, a forma como se referia aos amores que haviam passado, como achava que não precisava deles. Anna era a dona da música, ela era a mulher triste que decidira por outros caminhos. Depois de "For no one", Paul McCartney passou a ser simplesmente, Paul.
A partir daí tudo cresceu. Anna não se apropriava só de músicas, mas também de discos inteiros e trechos curtos. Odiava certos versos de “Help!”, refletiu-se em “If I fell” e já tinha passado pelo mesmo de “I´ve Just Seen a Face”. Esgotou os Beatles e seguiu para outras discografias e logo tinha uma centena de apropriações que falavam por ela, ou lembravam por ela, ou choravam por ela. Quando foi largada quis cantar “Walk Away” e comemorava vitórias com “Do you want to”. Fazia planos para cantarem “Cheek to Cheek” debaixo de sua janela. Ela seguia adiante, incansável: sua mãe era “A noite do meu bem” e seu pai era “I am mine” e ele lhe dera "All Star". “João e Maria” era sua infância, “Sem compromisso”, do Chico, deu a Chicão. “I will survive” era sua virada de mesa, o "White Album" talvez ela nunca esquecesse, “A seta e o Alvo” era sua maior discussão de relação.
A lista aumentou, sem espaço para tops 5, best of e greatest hits. Todas no mesmo patamar até o som escangalhar e um silêncio habitá-la por meses até ser expulso em grito. Hoje, Anna parou seu carro no vão central da ponte Rio-Niterói, ela tinha apenas 10 minutos antes que a viatura chegasse para tirá-la dali. Saiu do carro com um pacote preto agarrado ao peito e se debruçou no parapeito. O som tocava uma melancólica chamada “A comet appears” de um CD que um amigo lhe dera. Nenhuma das canções lhe disse nada nem o CD ficou associado para sempre ao amigo. Ela vinha perdendo o dom para apropriações. Jogou o pacote preto no abismo e tentou ouvir qualquer barulho. Silêncio.
Era, de certa forma, um suicídio. Todos os seus CD´s, todos os mais importantes, todas as canções e versos estavam lá dentro e sumiram no preto da baía. Anos de sentimentos alheios tomados para si, anos de dormência. Ela poderia cantarolar “Confortably Numb” mas nunca seria a mesma dormência que ela sentia. Era uma grande devolução de sentimentos que nunca foram realmente dela.
Encerrava a mania de deixar que falassem por ela, aquela sensação de que, se cantasse a plenos pulmões, falava melhor o que sentia. Pura mentira, fingimento e estupidez. Gritar, fazer pose, ela percebeu, não fariam por ela mais que rouquidão. Não era catarse, era esconderijo. Escondia-se atrás das melodias achando que era ela mesma. Não era. Fim de caso.
A viatura chegou.
“Moça, por favor, se afaste da mureta.”
“O senhor veio me prender pelas minhas apropriações indevidas?” – o guarda apenas piscou sem entender que alguns bons anos da vida de Anna já afogavam em água turva.
“A senhora não pode parar o carro na ponte.”
“Eu sei. Já estou indo.”
Bateu a porta, a música já estava no fim. “There´s a numbness in your heart and it’s growing...” – ela desligou. Voltou para casa em silêncio, leve e lúcida. Parecia uma desintoxicação, a remoção de um grande peso. Ela sabia exatamente como se sentia e ninguém explicaria melhor que ela e ninguém sentiria o mesmo. Anna era única agora, uma canção nova em folha que só ela sabia cantar.