14 março 2008

A Juke Box Life

A primeira apropriação indevida de Anna aconteceu em Abril de 2005. As anteriores não tinham o mesmo valor e não eram exatamente apropriações e sim, um grande senso de identificação. Anna apropriou-se da faixa dez do disco “Revolver”, dos Beatles. "For no one" caíra em seus joelhos em dia turbulento e choroso e tomou-a para si como um gato abandonado. Foi como tudo começou. Paul McCartney cantava o momento dela com todas as letras, a forma como se referia aos amores que haviam passado, como achava que não precisava deles. Anna era a dona da música, ela era a mulher triste que decidira por outros caminhos. Depois de "For no one", Paul McCartney passou a ser simplesmente, Paul.

A partir daí tudo cresceu. Anna não se apropriava só de músicas, mas também de discos inteiros e trechos curtos. Odiava certos versos de “Help!”, refletiu-se em “If I fell” e já tinha passado pelo mesmo de “I´ve Just Seen a Face”. Esgotou os Beatles e seguiu para outras discografias e logo tinha uma centena de apropriações que falavam por ela, ou lembravam por ela, ou choravam por ela. Quando foi largada quis cantar “Walk Away” e comemorava vitórias com “Do you want to”. Fazia planos para cantarem “Cheek to Cheek” debaixo de sua janela. Ela seguia adiante, incansável: sua mãe era “A noite do meu bem” e seu pai era “I am mine” e ele lhe dera "All Star". “João e Maria” era sua infância, “Sem compromisso”, do Chico, deu a Chicão. “I will survive” era sua virada de mesa, o "White Album" talvez ela nunca esquecesse, “A seta e o Alvo” era sua maior discussão de relação.

A lista aumentou, sem espaço para tops 5, best of e greatest hits. Todas no mesmo patamar até o som escangalhar e um silêncio habitá-la por meses até ser expulso em grito. Hoje, Anna parou seu carro no vão central da ponte Rio-Niterói, ela tinha apenas 10 minutos antes que a viatura chegasse para tirá-la dali. Saiu do carro com um pacote preto agarrado ao peito e se debruçou no parapeito. O som tocava uma melancólica chamada “A comet appears” de um CD que um amigo lhe dera. Nenhuma das canções lhe disse nada nem o CD ficou associado para sempre ao amigo. Ela vinha perdendo o dom para apropriações. Jogou o pacote preto no abismo e tentou ouvir qualquer barulho. Silêncio.

Era, de certa forma, um suicídio. Todos os seus CD´s, todos os mais importantes, todas as canções e versos estavam lá dentro e sumiram no preto da baía. Anos de sentimentos alheios tomados para si, anos de dormência. Ela poderia cantarolar “Confortably Numb” mas nunca seria a mesma dormência que ela sentia. Era uma grande devolução de sentimentos que nunca foram realmente dela.

Encerrava a mania de deixar que falassem por ela, aquela sensação de que, se cantasse a plenos pulmões, falava melhor o que sentia. Pura mentira, fingimento e estupidez. Gritar, fazer pose, ela percebeu, não fariam por ela mais que rouquidão. Não era catarse, era esconderijo. Escondia-se atrás das melodias achando que era ela mesma. Não era. Fim de caso.


A viatura chegou.

“Moça, por favor, se afaste da mureta.”

“O senhor veio me prender pelas minhas apropriações indevidas?” – o guarda apenas piscou sem entender que alguns bons anos da vida de Anna já afogavam em água turva.

“A senhora não pode parar o carro na ponte.”

“Eu sei. Já estou indo.”

Bateu a porta, a música já estava no fim. “There´s a numbness in your heart and it’s growing...” – ela desligou. Voltou para casa em silêncio, leve e lúcida. Parecia uma desintoxicação, a remoção de um grande peso. Ela sabia exatamente como se sentia e ninguém explicaria melhor que ela e ninguém sentiria o mesmo. Anna era única agora, uma canção nova em folha que só ela sabia cantar.

12 março 2008

Princípio da Incerteza

(versão feminina do texto "Joules", de Daniel Pfaender)

Ele já estava no bar quando cheguei, vícios ao redor: cerveja, cigarros, a pose e a morena da mesa em frente que sacudia madeixas prensadas em chapinha. Sentei bloqueando a morena. Serviu-me uma cerveja e um sorriso bonito e pouco dissimulado. Era sempre desse jeito, o sorriso convidava a sentar e logo havia aquela armadura de segurança que o fazia ter os movimentos mais firmes e determinados que eu já vi e que, no fim, se transformava em um certo esnobismo encantador. Nossos encontros eram assim: eu retraía e ele avançava naquela tática de homem que sabe o que quer, eu me deixava levar. Eu o admirava, engolia minhas meninices, caminhava mais que as pernas para aceitar suas ditas modernidades. Mas naquela noite estava cansada. Cansada do jogo, da espera, de olhar pra cara dele, de ter que ensaiar em mim 25 outras pessoas para saber qual se encaixava melhor com o humor do dia. Naquela noite só havia uma pessoa no bar e, no decorrer da conversa, ela não parecia nunca combinar com ele.

Eu falava de projetos, evolução, vídeo game e arte, ele ensaiava megalomanias com gestos amplos, dizia do quanto já tinha vivido, do último livro que tinha lido e da pena que era o mundo perder Fidel. Eu procurava o homem de antes e só encontrava um homem agradável qualquer. Discorreu sobre como gostava da liberdade e da pena que tinha das mulheres que se aproximavam imaginando poder namorá-lo. Disse-lhe que não tinha mais quinze anos e que não tinha necessidade dessas transgressões juvenis de “não-tenho-ninguém-e-sou-melhor-assim.”

“ah que é isso, você que é mais tradicional.” - ele zombou.

“ou você que não viu que tem 27 anos e não precisa mais da pose de menino pegador.” – eu retruquei.

Ele calou e eu percebi que algo dentro dele não soube me responder. Pela primeira vez faltaram palavras e não me vi acuada e sem jeito. Havia um espaço infinito diante dele que nunca tinha sido ocupado por mim, me espalhei por ali, cresci naquele vácuo. Sorri. Ele se desculpou, disse que precisava ir, pagou a conta e deu um beijo inacreditavelmente indeciso para o homem dos gestos exatos e do olhar determinado. Talvez tenha ido procurar a resposta direta que ele saberia me dar antigamente, talvez nunca mais sentássemos para uma cerveja. Tarde demais, estava dito e claro que algo havia desviado do caminho e, muito provavelmente, era eu.

Apenas duas coisas eram importantes ali, no entanto. A primeira era que eu deixei que ele me visse por inteira e ele não pareceu gostar. Devia, pois não é sempre que aposento as outras 25 para sentar só na mesa do bar. Faço isso com quem realmente paga a pena. A segunda era que, agora que sabia que podia ser dois, o homem seguro e o menino, ele poderia voltar mais agradável.

Eu, com certeza, teria opções à altura dos dois.



* O princípio da incerteza diz que é impossível determinar conjuntamente a posição e a velocidade de uma partícula.

06 março 2008

A Leoa e o Domador

-Alô?

[Dandan, dandandan, dandandan... chamada a cobrar, para aceitá-la continue na linha após a identificação...]

-É a Vââââânia!!!!

-Alô? Alô?

-Vanderson?

-Oi, Vaninha!

-Vanderson que porra é essa de dormir na minha casa, tomar café e não lavar os pratos?!

-Ah, desculpa mô, mas eu tava com pressa...

-Pressa nada, Vanderson! Deixou a toalha molhada em cima da cama e a cueca no banheiro. Tá pensando o quê, Vanderson?!

-Em casar com você.

-Se é assim eu aceito.
 

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