26 dezembro 2007

De Alagadiços e Areais

Cecília encarava aquela montanha branca tão próxima e aguardava Martin pacientemente. Ela agora era a única na cidade. Ela e as redes nas varandas. A ventania não havia parado por três anos consecutivos e agora as últimas portas abertas da cidade estavam trancadas. Ela chorava quieta, olhando a areia invadir as ruas da cidade. Mesmo que não se lembrasse mais como tudo começou, ela sabia exatemente como terminaria. No vazio.

De início, a areia que o vento trazia parecia vir de longe, irritava os olhos e deu trabalho a Seu Manel da Farmácia. Depois, começou a sujar as casas, foi se chegando calada, raspando as peles grossas daquele sol do meio da terra. Cecília achou que a cidade fosse se acostumar porque Alagadiços sempre se acostumava com as coisas. Todos se acostumaram com o fato de não haver padre por 10 anos até chegar Padre Jacinto e Alagadiços se acostumou a ele também. Se acostumaram com o fato do Plano Diretor Contra a Seca de Alfinim Ariza, filho do Coronel Sebastião Ariza, não ter dado certo e, ao invés de irrigar as plantações, o rapaz verdejou os campos do pai com a mesma rapidez com que a cidade ressecou. Alagadiços se acostumou a não ter mais que poça d'agua. A cidade se acostumou a ver os filhos e os pais partirem. As mulheres se acostumaram a esperar o carteiro. Porém, depois de um ano de vento e poeira os moradores acordaram com a Duna parada bem diante da cidade e aí ninguém mais quis se acostumar.

A Duna era grande, fazia sombra e caminhava na direção da cidade. A casa de Geraldo Anão foi a primeira a ser engolida pela areia. Pararam de chegar os tropeiros, caixeiros e, por fim, o correio e o prefeito. Cecília passava horas pensando como Martin faria agora que a montanha branca estava ali. Sonhava com o raiar do dia e a sombra de Martin chegando de barba por fazer.



A areia alterou os humores. Os homens viviam de olhos vermelhos, as mulheres curvadas de varrer, ninguém dormia direito e a comida era crocante . O povo virou uma gente magra, cinza e áspera. Até que o vento foi invadindo também a memória e raspando as lembranças de todos e a terra ficou sem sentido. Maridos esqueciam o que falar para as esposas, as crianças esqueceram as canções e, quando a areia impediu Padre Jacinto de rezar o Pai-Nosso, ele mesmo trancou a Igreja e partiu para a Duna como Cristo partiu para o deserto. Cecília esqueceu a infância e quase esqueceu Martin.


Foi quando Alagadiços começou a esvaziar de gente. O primeiro foi Zeca de Dôra que não voltou para buscar Luzia e os meninos. Depois, as trigêmeas de Seu Assis e - todos disseram que por pura coincidência - os três filhos de Dona Jurema. Assim, em ondas e sob o vento constante, Cecília viu cada um trancar sua casa e encher um jegue enquanto ela ficava os dias no banco da praça, vendo e esquecendo quem deixava a cidade. Aquela areia comendo suas memórias até perceber que quanto mais Alagadiços esvaziava, mais a Duna invadia a cidade e sumia com poços, jardins e portas até não restar quase nada. A Duna do esquecimento, aquele sumidouro de lembranças eram os outros esquecendo Alagadiços. Era Martin esquecendo-se dela. Zeca esquecendo Luzia. Os meninos de Luzia esquecendo a avó Isabel. As trigêmeas jogando fora o retrato de Seu Assis. Quanto mais esqueciam-se de Alagadiços mais a areia sumia com o piano alemão de Dona Marlúcia.


Padre Jacinto era o mais otimista, mas a areia comeu-lhe os humores e ele ficou sombrio e partiu. Em alguns dias Cecília esqueceu do Padre também. Só lembrava que precisava sentar e esperar alguém por algum motivo. A areia alcançou seus pés e cobriu-os no mesmo dia em que Martin completou 45 anos. Aos 50, ela não passava de cachos negros cheirosos de alfazema. Aos 60, Cecília era brisa. Aos 65, o vento parou. Aos 70, Alagadiços deixou de existir. Aos 75, Martin completou 50 anos de sul e 45 de casado com Maria Alice, moça carioca da Tijuca. Se ele lembrasse de Alagadiços saberia que não sobrou nem a ponta da cruz da Igreja nem - como era mesmo o nome dela? - Cecília no banco da praça.






3 comentários:

Bárbara disse...

Nossa. Já leio há algum tempo, mas esse não dá pra não comentar. Tão lindo, tão... Gabriel Garcia Marquez. =]

Stephanie disse...

você, seus ares de realismo fantástico e a visualidade do teu texto.

Pena que Alagadiços não resistiu como Macondo...

[ficções é genial - passeie pelo jardim dos atalhos que se bifurcam]

ah, e quem sabe Elisa não manda uma carta pra Suelen qualquer dia desses?

beijo beijo

Marcela Bertoletti disse...

Nossa Mari!
Acho que esse é o melhor texto seu que eu já li, que coisa linda!
Menina do céu, adorei!
Parabéns!

Beijocas

 

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