26 dezembro 2006

Como o Jorge soltou-se da coleira e se perdeu.

“completamente embriagado perdi meu cachorro Jorge,
como vou voltar pra casa se só ele sabe o caminho?” *

A noite pedia bebida, pedia música alta para que não ouvissem seus pensamentos, pedia um descolamento do mundo real. A vida inteira ficara na porta, o ano que passara estava preso entre roletas e seguranças. Vida mesmo era só aquele inconstante de luzes que trazia lembranças às duas amigas. Vida era suor e dança que não seguia o ritmo da música das caixas de som e sim, uns batuques na boca do estômago.

Diziam que eram meninas más porque bebem sem parar e sem motivo. Meninas más bebem assim e bebem também para esquecer. Faz parte da malvadeza assumir isso. As doses se repetiram com dedos firmes e rápidos que emborcavam copos no meio do sal e do limão. Companhia para um desafio. As mãos afrouxaram as coleiras. A noite pedia e elas também.

O cabelo se desfaz, o corpo sua, a roupa cola. As músicas, aos poucos, se tornam propriedades particulares. São estrofes da vida delas cantadas em um momento em que a vida estava suspensa lá do lado de fora, sendo severamente avaliada. Para cada dia havia uma estrofe diferente. As mãos cansaram de segurar as coleiras.

As duas saem, sentam-se no meio-fio, suadas, pernas estiradas, sapatos nas mãos. Nenhuma vergonha nisso. Mãos dadas, dia claro. A vida sentou ao lado. Estava tão claro que foram capazes de perceber que, por mais que afastassem pensamentos e tristezas, suas mentes não deixariam que se enganassem. Elas perdem para si mesmas, percebendo o inevitável no raiar do dia. As noites nunca serão sempre assim e os dias seguintes nunca serão dormentes de ressaca.

Riram de um forró besta no rádio de um podrão. “A burrinha da felicidade nunca se atrasa... Inexoravelmente.” – dizia Santana. Olharam as mãos vazias, àquela altura Jorge ia longe e ligeiro, já quase pelas bandas da Monsenhor Tabosa.
*música "Procura-se Jorge" da banda Coçadores del Chaco

02 dezembro 2006

Esfinges

“Não vou nem te perguntar porque sei que não vou entender. Ninguém entende as mulheres mesmo.”
“Odeio essa história de que ninguém entende as mulheres. Se vocês parassem por um momento de acreditar nisso perceberiam que nós somos de um entendimento bem fácil.”
“Não acredito nisso. Prefiro assim, gosto muito desse mistério das mulheres.”
“Como você é cego... não tem mistério nenhum!”
“Claro que tem! As contradições, as esquisitices, esse negócio de vocês nunca saberem o que querem, se um cafajeste ou um cara bacana, família ou trabalho, carinho ou porrada. Tudo isso. É que nem montanha-russa.”
“Você acredita que toda mulher quer um cara bacana?”
“E não quer?”
“Toda mulher quer um cara que a leia da forma certa. Linhas e entrelinhas. Basta prestar atenção. Bacana é pouco e simplista. Não tem essa de mistério, se vocês percebessem que o único mistério que existe é artificial, cuidadosamente moldado por mãos sensatas e unhas com esmalte... Esse é o mistério divertido e o único que vale a pena ser desvendado. É construído por nós, pura diversão. Para ambos os lados. Qualquer outro mistério é invenção, lenda, uma história que te contaram e contaram pro seu pai e pro seu avô e a todos os homens da sua linhagem até o sapo. E vocês acreditaram.”
“Mas o mistério que vocês constroem é o mesmo no qual nós acreditamos.”
“Esse mistério que você disse, esse de ninguém entender as mulheres, é imposto. Várias mulheres são um pouco perturbadas porque aprenderam que são esfinges, Monalisas, mulheres do brinco de pérola e precisam fazer jus à fama. Elas se enrolam tentando criar uma aura de incompreensão e acabam sem saber o que querem. A vida seria bem mais fácil se os homens acreditassem em mulheres normais, sem segredos. Vocês, homens, prorrogam as nossas esquisitices!”
“Nossa, você consegue tornar o divertido tão teórico. As mulheres adoram ser assim.”
“É verdade, é bem divertido ter que ouvir que as suas reclamações não fazem sentido porque se é mulher, não poder se estressar porque é culpa dos hormônios. Vocês estão confundindo mistério com esquisitice, um nem sempre é o outro. Não sou esquisita nem me esforço pra isso. Mas alguém disse pra uma ruiva canhota da idade média que ela era misteriosa como uma esfinge, ela gostou e cá estou eu, fadada a ser incompreendida! Entendeu?”
“Entendi, mas não acredito que exista uma mulher que não seja esquisita no mundo..”
“Prefere acreditar que nunca vai entender as mulheres?”
“Prefiro.”
“Sabe porque você prefere isso? Porque assim tem uma desculpa para todas as merdas que você faz.”
“Aí que você se engana, não faço merda: abro a porta do carro, dou carinho, atenção, converso, vou ao cinema, elogio o cabelo, discuto relação, leio muito, trepo, transo, fodo. E faço amorzinho. Nenhuma merda.”
“Taí a merda-mor.”
“Não entendi.”
“É porque, no fundo, a única verdade disso é que a maioria de vocês faz merda, mesmo os que fazem tudo certo. Ninguém quer ser um mistério. Já basta a genética humana de nunca nos entendermos com nossos eu-líricos, consciências, egos ou seja lá o nome que você queira dar. A gente já não dá conta de manter a unidade interna, ás vezes é tudo caco ou, no mínimo, uma pontinha lascada. Tudo o que a gente quer do mundo, veja bem, é colo e compreensão. Aí a gente sai pro mundo e a metade dele diz “querida, é assim porque você é mulher. Ninguém entende vocês, se fodam aí. Vivam com isso e não se esqueçam de ensinar às filhas de vocês. Torna o trabalho muito mais fácil.””
“Você é esquisita demais. Tá naqueles dias?”
“Ah, Deus.”
 

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