tomou  um gole da cerveja. um gole grande, um golão, apenas para apaziguar o  frio na barriga só de ver aquele portão, só de lembrar das escadas e do  elevador. nem ousou lembrar do resto porque precisaria de outro golão e  ela já estava bebendo desde cedo. 
subiu  os olhos pela fachada, franzindo a testa por causa do sol. achou a  janela de um dos andares e tomou outro golão engolindo rapidamente a  cerveja quase quente e a lembrança do cheiro do quarto atrás da janela. o  bloco suarento vinha descendo a rua, um mar de gente sem rosto e ela  com aquela máscara estúpida fingindo não ter rosto também. sabia que  estava bêbada quando achava as coisas estúpidas.
deu  o último golão no resto da cerveja. jogou a lata no chão e pisou  sentindo - com uma certa delícia vingativa - o alumínio ceder sob o pé.  queria cuspir. sabia que estava bêbada quando queria fazer coisas rudes  de pedreiro. sem poder cuspir, atirou a máscara estúpida no chão. 
sem  a máscara estúpida, no meio daquela confusão sem dono, o porteiro  reconheceu-lhe, deu um bom dia e, de longe, abriu o portão para que  entrasse. e aí, faltou-lhe o chão. ali, naquele simples "plect" da  fechadura eletrônica entre serpentinas e cheiro de suor, "as epifanias da vida podem ser tão escrotas...",  ela pensou meio pedreiro, pisando mais forte sobre o alumínio para  acreditar na realidade das coisas. e, tarde demais, já não conseguia  impedir a lembrança das escadas, do elevador e do apartamento, dos  ombros e das mãos e de tudo que existia além da janela e que, mesmo com a  porta aberta, ela não poderia refazer o caminho.
pegou  o celular e discou prendendo a respiração. o bloco já ia deixando-a no  meio do lixo e ela sentia que segurava nos últimos confetes da folia com  o estômago embrulhado, pensando que só nesse dia poderia fazer aquilo,  só o carnaval poderia empurrar-lhe até aquela beira sem que ela  esperneasse.  só o carnaval para fazê-la acreditar que é possível  despregar-se de si e fingir que há alegrias, coisas melhores e  possibilidades. e só o carnaval poderia dizer-lhe que, ao final, estaria  tudo bem. 
"alô?"  - ela falou sem muita certeza se haviam atendido e o carnaval  segurou-lhe a mão para dar-lhe mais coragem - "estou aqui embaixo.  precisava falar com você."
