01 dezembro 2008

Rehab

Larissa pegou a chave de casa, a bolsa e saiu de uma vez, sem tempo para dúvidas. Acreditando-se mais velha, mais segura, mais só - só no que dizia respeito a ele, na verdade - entrou no elevador e olhou o espelho. Concluiu que realmente não tinha mais o rosto sem defeitos de quatro anos antes; mais profundos que uma ou outra linha de expressão, eram os vincos de certas partes coladas às pressas. Sorriu ao leve pensamento de que ele se surpreenderia com a sua presença, se reaproximaria manso, comentaria que vira seu último trabalho e, ansiando por uma vingancinha feminina, pensou em rejeitá-lo ao final da festa.

Ela estava indo para qualquer lugar porque sabia que o encontraria, reparou em todo o esforço de estar caminhando para fingir um encontro ao acaso e revê-lo. Naquele silêncio constrangedor dos elevadores, refazia seu passos como em um jogo de xadrez, analisando jogadas, movendo sua rainha ameaçadoramente na direção de um rei ainda não destronado por completo. O elevador estava cheio de memórias dele. Então, bateu-lhe o quanto o esquecimento é um exercício de disciplina. Ela nunca o esqueceria como esquecia as chaves, a carteira e o celular: em qualquer lugar e repentinamente. O esquecimento, nesse caso, é de prática muito mais consciente do que as mães ensinam para as filhas. Não existe "vai passar", só o "faça passar".


Por escolha dele, Larissa havia arrancado-o da sua vida a golpes de pé-de-cabra e sangue pisado. Agora, de cacos colados, oscilava entre aceitar as cicatrizes ou aceitar que o destino pregava-lhe uma peça e ela andava feliz para a arapuca. Não podia perder a chance, não podia deixar de se testar e ver até onde a disciplina a havia elevado, porém, ela sabia, a tênue rede de segurança não sustenta todo o peso de sentimentos antigos. Ir para falhar, para saber que todo o auto-controle era mentira, para doer. Até que ponto a resignação da dor de amor deve persistir? Até onde ela aprendeu e até onde ela insistiu no vazio óbvio? Amar é doer. Mas é também paz de espírito e feridas fechadas. Qual valeria depois dos anos em silêncio?


O elevador chegara ao térreo, entrou no táxi, o motorista a interrogou pelo retrovisor e, sem resposta, pegou um papel amarrotado:



"a central disse que era pra Gávea. pra qual rua?"



Silêncio. A luz do poste piscou, gotas de chuva correram pelo vidro, o motorista encarava, ansioso por encerrar a noite.


"não, não. é pro flamengo. mudei de idéia."



Ainda não era a hora de se colocar em dúvida, mas já era tempo de honrar os cacos colados.


 

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