04 fevereiro 2007

Voz rouca

Via essa menina pelas ruas com passos decididos para todos exceto para ela. Andava muito quieta, virada para o lado de dentro, caminhando meio pelo avesso, dando uma boa examinada em entranhas e pensamentos. Os óculos escuros, que um amigo um dia dissera que não caíam bem no seu rosto, serviam mesmo para esconder olhos revirados que encaravam o fundo da cabeça.

Vinha ela, então, muito compenetrada e meio frágil, procurar no mundo letras para o que sentia. Passava meses nessa busca sempre triste de catar letras como quem cata feijão. Juntava-as no vento, na praia e nas sopas. Roubava de risos alheios e escolhia uma ou outra entre as várias que ficavam presas em seus dedos quando passava a mão nas lombadas dos livros. Guardava todas na mente e nasciam, perto ali do coração, frases feitas de pedacinhos de realidade.

Meses neste trabalho insistente de formiga letrada para pode dizer tudo o que tinha dentro de si. Juntou suas letras mais lindas, eloqüentes e melancólicas, as mais parecidas com o que ela era por dentro e, numa noite, disse todas. Falou com todas as letras. Uma construção inteira que, aos seus olhos, formava uma escultura quase certa do que ninguém via dentro dela.

Faltavam só alguns detalhes, algumas letras e palavras que ela esperava tirar de algumas respostas e tapar buracos na sua escultura, reforçar articulações. Ao invés, recebeu um abraço gostoso, um beijo na testa, um tapinha no ombro, um cheiro leve de esperança que se desvaneceu no primeiro suspiro. Será que ouviram? Não entenderam? O sono anuviou a vista e não se pode ver como ela estava por dentro, como ela era inteira mosaico. O sono tapou as falas ou ela se enganou achando que poderiam existir e, na verdade, não eram mais que sereias e harpias?

N-e-n-h-u-m-a l-e-t-r-a.

Ficou lá a estátua que deveria dizer tudo o que ela sentia por dentro. Capenga e inaudita.

Pôs os óculos grandes demais, perdeu-se a menina dentro de si de novo, procurando outras letras para ver se diz melhor ainda o que quis dizer dessa vez. Outros meses, no entanto, até curar as bolhas das mãos e o inchaço dos olhos vermelhos, até ter coragem de se mostrar novamente e arriscar.

Novos passos pretensiosamente decididos, cada vez mais cansados de procurar.
 

Designed by Simply Fabulous Blogger Templates Tested by Blogger Templates