05 novembro 2012

Alagadiços e Areais - Toím


Essa é a terceira história de Alagadiços, as outras estão aqui: Cecília, Alfinim e D. Eulália.


Sem dinheiro para garantir que o filho crescesse bem alimentado, longe das dívidas, do cangaço e das malvadas, os pais de Antonio Cícero da Conceição Aparecido apelaram para a Divina Providência como padrinhos do pequeno. E o menino, desde então, nunca foi comum. Toím era um menino que lembrava de tudo, até do que veio antes dele. Tinha a memória dos santos. Toím lembrava, coisa que é diferente de não esquecer. Porque "as lembranças nunca são todas de verdade" - ele dizia - "É tipo como se fosse meio que assim de verdade." Lembrança é sempre mais bonita ou mais feia que as coisas que não esquecemos.

Toím cresceu lembrando do que via e do que não via e falava tão bem das coisas que lembrava, com tanta vontade como se estivessem acontecendo de novo, que arrebatava multidões. Toím poderia ser político mas virou livreiro. Encomendou um jegue de livros ao caixeiro, pôs tudo numa saleta estreita, abancou-se numa cadeira na calçada e não havia quem não recorresse a ele ou aos seus livros em busca de respostas. Viúvas faziam fila pedindo que Toím descrevesse os rostos de seus maridos mortos que elas não lembravam mais, os meninos pagavam 25 centavos para que ele lembrasse de Isadora, a puta mais linda de Alagadiços, e mais 50 para que contasse como ela montava nele como se fosse o último dos dias. Toím vivia cheio, mais de memórias que de coisas para fazer. Até que.

Maria Estela Veiga e Farias vinha do Sul e ficava rosa ao andar na rua. Alagadiços fez fila para vê-la saltar do carro do prefeito e entrar no jardinzinho do casarão da praça onde agora, e pelo verão que se sucedeu a sua chegada, ela moraria. E, quando Toím pôs os olhos nela, foi como se todo o mundo entrasse em colapso. Nada em Maria Estela existia em Toím. Nem os olhões azuis, nem a pele branca, nem os cachos loiros. Nada em suas lembranças era sequer próximo a ela. Alguém, Toím pensou, acabara de inventar Maria Estela e colocara a bichinha ali naquela terra-de-meu-Deus. Maria Estela não era lembrança, ela era. E nada naquela cidade voltou a se repetir. Cada dia que passava a cabeça de Toím se enchia de novas lembranças. 

Toím se empanturrou de Maria Estela. Lembrava-se de tudo a todo momento. Das sardas, dos pelos, do dente que lhe faltava no fundo da boca, da respiração leve depois que se deitavam. Maria Estela era a lembrança que virava realidade e a realidade que virava lembrança. Se olhasse no dicionário veria que delírio tinha como sinônimo o nome dela. Nem Isadora sobrevivera às lembranças da galega. Até que.

Sem carro de prefeito e multidão na rua, Maria Estela deixou Alagadiços. Não devolveu os livros de Toím, não pagou a conta da mercearia e muitos começaram a achar que ela havia sido apenas fruto de um verão extremamente quente. Só Toím permanecia sentado na sua cadeira acreditando em Maria Estela, lembrando de cada pedaço incessantemente. Não comia, não dormia porque bastava lembrar de como era tudo isso com ela. Já não havia mais quem lembrasse dos mortos, de Isadora, de como Alagadiços era verde antes de Sebastião Ariza ou de como se fazia aquela receita de pamonha. Aos poucos as memórias de Toím só serviam para lembrar de um verão que todos achavam que só podia ter sido uma insolação. Aos poucos ninguém mais queria lembrar.

Toím definhou sentado na cadeira, permaneceu duas ou três gerações na memória da cidade e depois sumiu como Maria Estela. Virou insolação. Foi quando a Duna chegou a Alagadiços e começou a engolir a cidade e, sem memória e sem Toím, ninguém nunca soube porque ela estava lá. 
 

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